terça-feira, 20 de novembro de 2007

Memória e voz

(Escrevi esse texto pra ser publicado no jornal dos estudantes do IP-USP, mas caso não saia a tempo, aqui vai)

Memória e voz

“Celebração da voz humana

Tinham as mãos atadas, ou algemadas, e no entanto os dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. Os presos estavam encapuzados, mas, inclinando-se, conseguiam ver algo, um pouquinho, por baixo. Ainda que falar estivesse proibido, eles conversavam com as mãos.
Pinio Ungerfeld me ensinou o alfabeto dos dedos, que na prisão aprendeu sem professor:
– Alguns tínhamos má letra – me disse –. Outros eram uns artistas da caligrafia.
A ditadura uruguaia queria que cada um fosse nada mais que um, que cada um fosse ninguém: nas prisões e quartéis em todo o país, comunicar-se era delito.
Alguns presos passaram mais de dez anos enterrados em solitários calabouços do tamanho de um ataúde, sem escutar mais vozes que o estrépito das grades ou os passos das botas pelos corredores. Fernandez Huidobro e Maurício Rosencof, condenados a essa solidão, se salvaram porque puderam falar-se, com golpezinhos, através da parede. Assim se contavam sonhos e lembranças, amores e desamores; discutiam, abraçam-se, brigavam; compartilhavam certezas e belezas e também compartilhavam dúvidas e culpas e perguntas, dessas que não têm resposta.
Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, à voz humana não há quem pare. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde seja. Porque todos, todinhos, temos algo a dizer aos demais, alguma coisa que merece ser pelos demais celebrada ou perdoada.”

Eduardo Galeano (tradução livre de trecho de “El libro de los abrazos”)

Depois do último evento de memória do nosso CA, a professora Ecléa Bosi, numa conversa de corredor, contava um pequeno detalhe desses que ocupam as notas de rodapé da historiografia oficial (a mesma que fundamenta que uma rua vizinha nossa tenha o nome do militar que ordenou a morte da Aurora Furtado). Trata-se das circunstâncias em que morreu Carlos Lamarca, companheiro da Iara Iavelberg. Contava a Ecléa que ele morreu sob um pé de angico. Logo depois de os vigias que estavam à frente lhe dizerem “os homens estão chegando”, ele toma um tiro, sem ter tempo de ter qualquer reação à notícia escutada. Ecléa termina esse relato comentando que curiosamente, Lampião morreu exatamente da mesma forma, debaixo de um pé de angico, sem ter tempo de reagir à notícia dada da mesma maneira: “os homens estão chegando”.
Sem melhor resposta pra dar, lhe digo que é triste, mas a história se repete. Ela responde, “espero que não com vocês”.
Recentemente li no jornal de uma chapa candidata ao nosso DCE pra próxima gestão a notícia de que um estudante de uma universidade americana fora preso no meio de uma palestra do senador John Kerry por fazer-lhe perguntas inconvenientes ao que seria uma palestra-campanha. As circunstâncias de seu aprisionamento são detalhadas e me parecem eloqüentes por si mesmas: ao tentar fazer uma segunda pergunta o estudante é pego por três policiais e algemado e, ao insistir em dizer que não havia cometido nenhum delito, é silenciado com um aparelho que lhe ministra choques elétricos dolorosos o suficiente para pará-lo (o velho choque elétrico, esse dispositivo fetiche de controle dos loucos, dos insistentes; essa maravilha produtora do bom-comportamento).
Não soube mais nada do destino do estudante. Provavelmente a imprensa oficial não tem nada a dizer a respeito.
Escrevo esse texto como uma tentativa desajeitada de marcar a importância radical e a raridade cada vez maior dos que levantam a voz num mundo que sofistica em ritmo alucinante as ilusões de liberdade e os mecanismos de silenciamento (ironicamente o dicionário do meu computador não reconhece essa palavra).
Lembro de ter lido em algum lugar a respeito da maneira como um dos comandantes do governo americano na época da guerra do Vietnã justificava a legitimidade da intervenção militar com o argumento de que a “maioria silenciosa” apoiava a invasão, contrariamente à vontade da minoria, barulhenta, que ousava protestar.
Em nosso cotidiano, me assusta assistir à sutil guerra fria entre minorias barulhentas e maiorias silenciosas (sem maniqueísmos, afinal esses dois pólos representam quase que lugares estruturais que podem vir a ser ocupados pelos mais diversos atores) e a supremacia da pressão pelo silêncio, do enfrentamento individual do salve-se quem puder, do refúgio em nossas próprias epopéias privadas num mundo cada vez com menos esperança de sobrevivência, da individualização que nos homogeiniza em uma maioria silenciosa, incapazes de sequer saber contra o quê gritar...
Pergunto-me, pensando em nosso cotidiano de estudantes e produtores da psicologia na universidade, e na atuação das necessaríssimas instâncias avaliadoras de nosso desempenho produtivo, até que ponto a lógica produtivista a que estamos conformados todos de alguma maneira (senão conformados, submetidos) não funciona como silenciador da possibilidade de dizer realmente o que precisa ser dito.
Uma das melhores maneiras de silenciar a verdade de um sujeito é permitir-lhe dizer sem parar apenas o que não importa. O vômito verbal dos apresentadores de programas de televisão aos domingos o ilustra bem.
Domínio do silenciamento, domínio do esquecimento. A impossibilidade de dizer é também a impossibilidade de lembrar, e de, com isso, cultivar um enraizamento histórico que nos articule como herdeiros dos mesmos sonhos (ou feridas).
Alegoria do silenciamento é o olhar catatônico ou o relato verborrágico de violências que é uma constante em pacientes dos manicômicos que ainda permanecem em pé. Grito que denuncia a violência apagada relegado ao aprisionamento do controle farmacológico, do eletrochoque, da ausência de alguém que o escute como voz pública, que diz algo a respeito do mundo todo.
Se, como dizia um ilustre professor de nosso departamento melhor-avaliado (isto é, o mais produtivo), o que foi publicado há mais de dez anos está morto, é irrelevante, há espaço pra memória e pra palavra enraizada em nossa produção? Ou nos cabe produzir discursos cabíveis na linguagem power point da mediocridade?
Não consigo encontrar uma forma de escrever um parágrafo minimamente conclusivo (talvez porque é onde a fala claudica que algo importante possa aparecer). O que me motivou a escrever esse texto foi simplesmente uma vaga tristeza pelo apagamento da memória dos tantos que ousaram desobedecer o que merecia ser desobedecido. Minha única intenção (não satisfeita, a meu ver), era prestar-lhes alguma homenagem, ou de novo convidar a uma lembrança. As questões implícitas e explícitas que me motivam são velhas questões. Não é de modo algum a primeira vez que alguém as faz. Mas no “mundo ao contrário” em que vivemos há cada vez menos espaço pra elas, ou mesmo pra memória dos que ousaram fazê-las de novo, e de novo, incapazes de simplesmente se conformar.
De fato, “os homens” estão sempre chegando.