quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Alice Ruiz

já não temo os fantasmas
invoco a todos
que venham em bando
povoar meus dias
atormentar minhas noites
entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me falta

Alice Ruiz

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Walt Whitman


Trechos de "Folhas de relva", Walt Whitman (!)


"(...) Alguém estava pedindo para ver a alma?
Olhai vossa própria forma e semblante, pessoas, substãncias, bichos, as árvores, os rios defluindo, as rochas e as areias.

(...)

Notai que o corpo inclui e é o significado, a idéia mestra, e ele
inclui e é a alma:
quem quer que sejais vós - como é sublime e como é divino o vosso corpo ou qualquer parte dele!"

"(...) Folga comigo na grama, afrouxa o nó da garganta,
nem palavras, nem música, nem rimas estou querendo, nem
costume nem lição, nem memso do melhor,
quero só o acalanto, o murmúrio da tua voz valvar.

Penso em como uma vez nos espichamos deitados certa manhã de verão transparente,
como forçaste a cabeça nos meus quadris e gentilmente te viraste sobre mim
e me rasgaste a camisa no osso do peito e efiaste a língua em meu coração nu
e foste assim até sentir-me a barba e foste assim até sentir-me os pés.

(...)

As barbas dos homens moços brilhavam de gotas d'água
caindo-lhes dos compridos cabelos,
pequenos fios d'água lhe escorriam pelo corpo todo.
Uma invisível mão também passava pelos corpos deles,
descendo trêmula das frontes e quadris.

Os moços nadam de costas, claras barrigas ao sol, sem
indagarem quem estende a mão para eles,
eles não sabem quem enche o peito e desiste de sobrancelhas
curvadas e vacilantes
nem lhes ocorre que estejam salvando alguém com a água que respingam.

(...)

Já não ouviste dizer que era bom ganhar o dia?
Eu digo que perder também é bom, batalhas são perdidas com o mesmo espírito com que são ganhas.

(...)

Viva àqueles que fracassaram!
E àqueles cujos navios de guerra afundaram no mar!
E àqueles que em pessoa afundaram no mar!
E a todos os generais que perderam nas manobras e foram todos heróis!
E ao sem-número dos heróis desconhecidos equivalentes aos
heróis maiores que se conhecem!

(...)

Não sou de concha calosa,
tenho instantâneos condutores por mim todo, esteja andando
ou parado,
apreendem cada objeto e o levam sem dano através de mim.

Eu simplesmente me animo, tateio, sinto com os dedos, e sou
feliz
tocar com minha pessoa a de outrem é quase tanto quanto eu
posso resistir.

Estão todas as verdade à espera em todas as coisas, (...)

(...)

Eu parto que nem ar, sacudo os cabelos brancos ao sol que
está indo embora,
derramo minha carne em remoinhos e a deixo flutuando em
pontas rendilhadas.

Eu me planto no chão para crescer com a relva que eu amo,
se de novo me quiserdes, buscai-me embaixo das solas dos
vossos sapatos.

Dificilmente sabereis quem sou ou o que significo,
mas apesar de tudo para vós serei boa saúde
purificando e dando fibra ao vosso sangue.
Deixando de encontrar-me ao primeiro momento, conservai a coragem:
perdendo-me em algum lugar, ide procurar-me em outro;
em algum ponto eu hei de estar parado a esperar por vós".

sábado, 19 de janeiro de 2008

Associação livre

Gosto de dormir em viagens curtas ou na última hora de uma viagem longa. É como um sentido instintivo de fim, que me faz finalmente aceitar...
Eu nunca estou suficientemente distraído e sempre quero mais da alegria – a que já tenho, a que já tive, a que sonhei, a que adivinho, a que me mata ou me faz reviver... as que têm e as que não têm nome. Sempre fui tolo o suficiente pra achar que se desejamos algo estando completamente inteiros naquele desejo, então aquilo é nosso por direito. Porque a vida tinha de ser justa...
Devia ter aprendido na Índia a não acreditar nas palavras que me dizem e a aceitar que momentos de graça e de alegria plena são relâmpagos (nossos olhos não saberiam o que fazer com tanta luz se ela durasse mais). O resto é travessia da escuridão de infinitas solidões. E só.
Mas não aprendi. E sempre me recusei a adotar a sabedoria cínica das razões pragmáticas e do realismo que se conforma. Porque nunca um soco vai ser capaz de ensinar mais e fazer mais bem que um beijo (só preciso convencer a vida disso... mas ela é tão cabeça-dura). E a memória de um único instante já é suficiente pra nos desviar pra sempre o caminho.
Acho que sou amigo do Álvaro de Campos porque já levei porrada... e sou ridículo tantas vezes... e defendo a Psiquê do mito e também olharia pro rosto proibido do amado, e não aceito a felicidade que não tem rosto e sacrificaria meu fígado pra roubar o fogo dos deuses e prefiro uma vida breve a deixar de ouvir o canto das sereias.
O escuro selvagem da floresta me parece mais luminoso que nossas lâmpadas elétricas e eu sempre gostei demais do silêncio dos cristais cheios de pontas...
Não há nada que nos garanta que essa vida é mais real que um sonho, nos lembram os mestres chineses. Os meus, de qualquer forma, são meu único norte e sempre me levam pra fora do que eu tinha planejado. “Porque uno es más autentico cuanto más se parece con lo que ha soñado para sí mismo”.
Um tio meu me dizia o quanto seria linda uma viagem que faríamos. Ela nunca aconteceu e até hoje meus olhos brilham como se eu já estivesse lá e o preço por esse lume vivo no olhar é alto demais e eu sempre caio em todas as armadilhas que eu já devia conhecer...
Troquei a sabedoria prudente pela vida e desde então os perigos dos quais estava protegido não cessam mais. Acredito e amo os vaga-lumes porque eles me lembram que as estrelas também estão entre nós e são sim pequenininhas, como o sabem as crianças, e é só se descobrindo pequeno que alguém pode amar e ser amado.

(Não sei até quando, mas ainda prefiro essa dor de ouvir meu telefone tocando quando é sempre algum outro barulhinho à muda resignação das violetas sem cheiro)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Pequena estória de um porquinho

Era uma vez um porco-espinho.
Só que diferente dos demais de sua espécie.
Por alguma razão misteriosa, o porco-espinho desta história não tinha a pele coberta de espinhos voltada para fora, mas para dentro. Era como se ele tivesse um casaco de espinhos do avesso, com os espinhos espetando a si mesmo. Um casaco impossível de tirar.
A presença dessa pele de espinhos interna tinha algumas conseqüências na vida do porquinho. A primeira é que os demais porcos-espinhos não sabiam identificá-lo como um outro da mesma espécie, assim como os outros animais não o reconheciam como tal. Todos o consideravam algum tipo de roedor comum, um rato do mato, talvez um porquinho-da-Índia. É que, ainda por cima, a parte de fora do casaco, aquela que nos outros porcos-espinhos ficava pra dentro, era toda macia e coberta de um pelo fininho, que dava a ele todo um ar (e textura) de chinchila ou coisa do tipo.
Outra conseqüência desse casaco ao contrário era que qualquer contato do porquinho com qualquer outro bicho ou coisa fazia com que os espinhos ocultos de seu casaco secreto lhe espetassem dolorosamente a pele (e os órgãos), sem que ninguém pudesse se dar conta disso. Por um tempo, por causa disso, o porquinho evitava o contato com todos, a fim de se proteger dessa dor que nem ele mesmo conseguia entender, já que ele próprio não via os espinhos que carregava lá dentro.
Acostumado a isolar-se com medo da dor inexplicável, o porquinho passou a habitar uma toca subterrânea escura. Alguns bichos da floresta onde ele vivia o admiravam por sua austeridade de eremita. Supunham que ali estaria alguém que tinha conseguido renunciar ao mundo em nome de alguma busca maior e mais nobre. Outros o achavam um bicho arrogante, que se considerava superior aos demais e por isso nem se dava ao trabalho de ir ao encontro de nada nem ninguém. Outros tinham pena dele. A maioria, com o passar do tempo, passou a simplesmente ignorá-lo.
O que ninguém, nem ele próprio desconfiava, é que num certo ano especialmente quente, com a chegada da primavera, alguma coisa dentro do porquinho começou a desabrochar como as flores estavam fazendo lá fora (sem que ele nem soubesse, acostumado que estava com a escuridão da toca). Alguma coisa mais forte do que a força do costume, do medo, do conforto do mesmo, da dor... alguma coisa mais forte que seus espinhos o impelia a sair e buscar o quê? A resposta foi se mostrando evidente: o porquinho precisava de outros bichos, de outros porquinhos. Precisava mais do que de comida, de água, da proteção da caverna, do quentinho nos dias de chuva, do fresco que o protegia do calor extremo, precisava mais do que tudo dos outros. A partir daquele momento, era (quase) como se sem os outros ele não mais existisse. Ele até existia na caverna, mas agora ficava claro que existia endereçado a alguém. Que existia só porque no fundo, mesmo sem saber, carregava dentro de si a promessa inabalável de que em algum dia, algum outro porquinho abriria a carta que ele carregava em si mesmo e a conseguiria ler e entender. E quem sabe ele mesmo então pudesse ouvir o que estava escrito na carta, pois nem ele sabia o que essa carta dentro dele dizia. Só o que sabia é que ela fora escrita durante anos, cheia de esmero, esperando o dia em que algum porquinho a encontraria entre os espinhos.
Talvez os espinhos tivessem surgido num tempo remoto da vida do porquinho pra proteger essa carta. Pra que ninguém a encontrasse cedo demais, ou antes de saber o que fazer com ela... mas isso era impossível de saber.
O que o porquinho sabia é que não havia mais como esperar ali.
O que ele não sabia é que a dor dos espinhos escondidos seria agora ainda maior que antes, pois seu corpo todo havia se acostumado à ausência de contatos um pouco mais fundos ou com um pouco mais de duração. E quando ele se desse conta disso, sangrando lá dentro sem nem saber, ficaria muito perdido...
Agora eu pergunto a vocês: o que vai ser desse porco-espinho cuja necessidade mais premente e intensa se choca com aquilo que ele é? O que será dessa criaturinha minúscula e quase invisível que já não sabe mais viver sem o abraço de outros porcos-espinhos, se cada abraço lhe espeta tão dolorosamente?
Desde já peço desculpas (talvez devesse tê-las pedido antes), mas eu também não sei. Acabo de encontrar o porquinho morando em algum lugar aqui, no meio do caminho entre a caverna e o desconhecido e a saída pra o impasse em que ele (a vida) se meteu está longe do que alcança minha imaginação. Suponho que cada um de vocês tenha uma resposta possível (ou mais perguntas ainda). O porquinho morre de curiosidade pra conhecê-las, ainda que me confesse que ele também tem dúvidas a respeito de se existe alguma, ou se existe alguma que ele possa escutar sem descobrir por si mesmo. Por enquanto, eu e ele estamos um tanto perplexos, sem conhecer saída pro labirinto em que ele está desde muito tempo.
E é um porquinho tão pequeno, imaginem só...

Silêncio

O silêncio que a gente busca não é um silêncio que se possa encontrar como resultado de uma procura ativa. Esse silêncio de caverna, essa música dos cristais pra além do tempo, nasce da espera. (E) nos encontra sempre e somente quando estamos distraídos. Muitas vezes só notamos que ele está a nosso lado quando já está perto de ir embora ou quando já foi. É enorme o perigo de idolatrar as pegadas que ele deixa confundindo-as com ele. Fazer isso nos ensurdeceria para sempre...

domingo, 13 de janeiro de 2008

Namorado - Drummond

Gostei demais desse texto. Dedo na ferida até o fundo, mas lindo...

Namorado

Carlos Drummond de Andrade

"Quem não tem namorado é alguém que tirou férias de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, de saliva, de lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiriu, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é fácil. Mas namorado mesmo, é muito difícil.
Namorado não precisa ser o mais bonito, mas aquele a que se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida, ou bandoleira; basta um olhar de compreensão ou mesmo aflição.
Quem não tem namorado não é quem não tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento, e dois amantes, mesmo assim não pode ter namorado.
Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema, sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho. Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou largatixa e quem ama sem alegria. Não tem namorado quem faz pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos de amor com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.
Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre a meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor. Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.
Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não chateia com o fato de o seu bem ser paquerado. Não tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar. Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou meio-dia de sol em plena praia cheia de rivais. Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.
Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilo e medo, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela.
Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria. Se você não tem namorado porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida passar e de repente parecer que tudo faz sentido:
'Enlou-creça' "

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Loucura

"Também eu saio à revelia
E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpera e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo(não posso ainda
acreditar
Na vida) e demito o verso como quem
acena
E vivo como quem despede a raiva de Ter
visto."

Ana Cristina César

Trecho de conversa hoje (filosofia de messenger pra não se afogar irreversivelmente na angústia):
'E quais são os motivos pra sua possível loucura? (pergunta o amigo)'
'Bobagem (respondo). Talvez o fato de que a vida nunca é como nos filmes... temos muitas horas e pouco tempo. Muitas esperas, e coisas insolúveis e nem temos um desfecho triste ou feliz, mas uma incerteza inabalável, sempre...'

domingo, 6 de janeiro de 2008

Poesia - Fernando Pessoa

"Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e margens dos rios. Também a há na cidade - não o neguem - é evidente para mim aqui onde me sento: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas, em cada movimento ínfimo (...).
(...) Pois a poesia é assombro, admiração, como de um ser caído dos céus que toma plena consciência de sua queda, espantado com o que vê. Como alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por recordar esse conhecimento, lembrando-se que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas não se lembrando de mais nada."

Fernando Pessoa ("Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal", presente da Tan, amiga linda)