quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Paixão sem objeto

Paixão sem objeto:
Texto sobre "Tira meu fôlego" (Direção e concepção Elisa Ohtake)

    Pela segunda vez, tive a experiência inquietante de assistir a “Tira meu fôlego”, espetáculo tão desejado e entusiasmante, entre outras razões por procurar responder a certo estado de coisas na dança que parecia apontar pra quase impossibilidade da vitalidade, da crueza, da emocionalidade, do atravessamento afetivo... exceto quando organizado (e assim, por tantas vezes, castrado, distorcido, desviado) por uma racionalidade asceticamente clarificada, pela rápida e astuciosa coerência conceitual, pela justificativa convicente exigida nos editais e universidades.
    “Tira meu fôlego” promete partir da emoção, promete “máxima potência”, questiona possibilidades do afeto num universo de capturas sensacionais, num contexto de mercantilização das emoções e encontros. Promete um retorno a alguma coisa que perdemos? Fiquei querendo demais ver, desde que li o texto de Elisa Ohtake apresentando-o, e colocando tão bem e claramente questões que esticam, contorcem, dilematizam e inquietam aos atravessados de alguma maneira pela dança hoje.
    Uma ambiguidade incômoda, mobilizadora percorreu meu encontro com o trabalho. A ironia, o pastiche, a exacerbação dos clichês, o non-sense, o humor como recurso deliberado e constante, as pausas típicas dos comediantes stand up iam delimitando e organizando (ainda que o método e a racionalização fossem igualmente ironizados) corporeidades tão extraordinárias na sua potência, ao mesmo tempo fulgurante, contagiante (quantas danças que literalmente moveram meu corpo!), ao mesmo tempo um tanto interditada, velada, deslocada sempre um pouco mais pra lá.
     Naquele palco, os apaixonados não sofrem por ninguém, não se remetem a ninguém. Precisam provar sua paixão, sem considerar objeto. A ausência de tal objeto por quem se apaixonar (uma pessoa, uma coisa, uma memória, um rastro, o que seja) tem muitos efeitos. Um dos mais imediatos a meu ver é a impossibilidade de singularização. Não estamos diante de uma paixão específica e narrável (talvez então de uma abstração? de uma paixão como ideia? de qualquer paixão? ou de todas? O que também seria o mesmo que nenhuma). Ao não se remeterem a uma experiência singular de paixão, os bailarinos criadores talvez recusem ou desafiem nosso voyerismo curioso (ou consumista? sensacionalista? fofoqueiro?) de entrever afinal sua paixão, seu modo de apaixonar-se, sua história ou sua paixão “real” corporificada, presente ali, exibida em cena como se isso fosse possível e visível.
     Ao mesmo tempo, de fato, a paixão fora da cena parece muitas vezes alguma coisa sem objeto, encenação que protagonizamos e ao mesmo tempo dirigimos distanciadamente, desde algum lugar não muito claro, sofrida como um sintoma histérico, enraizado no corpo, materialmente pulsante, mas também, por outro lado, estranho à matéria e à verdade do sujeito.
    Afinal o que promete este espetáculo ou qualquer outro espetáculo com relação à vitalidade da vida mesma? É clara a recusa em espetacularizar a paixão. A ironia e o sarcasmo, a ridicularização e o clichê evidenciam que certa promessa de vitalidade total é sempre relativa, sempre está em tensão com a ficcionalidade intrínseca à cena.
    E no entanto é tão delicioso imaginar que será ainda possível encontrar “uma luta bonita de ver, uma luta entre a ironia e o fazer pra valer, entre o “blasesismo” nosso de cada dia e a vontade total”. (texto de Elisa Ohtake ).
    Talvez certa leitura de Barthes ou de outros tantos nos obrigue a sensatamente considerar a paixão (e a vitalidade?) um efeito de discurso, uma construção insustentavelmente contraditória, ou um reflexo condicionado, mas há a promessa de alguma coisa menos delimitável e contingente...
    Confesso que nos momentos em que me senti realmente prestes a estar ali junto com alguém que corria o risco de cair no abismo do ridículo (e do maravilhoso e trágico) que é um ser apaixonado ou um ser que em cena de fato afete-se ao afetar o outro pra além do artifício; quando estava prestes a algo assim (vontade de um gozo estético “real” desejado ansiado talvez impossível talvez proibido por certo contexto e estados das coisas na dança?), logo uma piada, um pedido deliberadamente fake de ajuda me tirava dessa volúpia (ou voracidade consumista de público acostumado com entretenimento e indústria cultural) que seria querer alguma coisa tipo catarse, querer me ver ali no outro ou encontrar na pessoa do performer alguma pessoalidade “real”, alguma confissão de sua própria paixão ou de sua maneira própria de viver essa coisa tão obviamente ridícula e tão fortemente humana, que resiste.
    Estou me repetindo e sei que este texto não tem linearidade ou estrutura lógica satisfatórias. Mas é uma forma de dizer que talvez pra além do pastiche e da ironia, o recurso ao que parece “apelativo” e demasiado comprometido com uma lógica da captura da emoção pode ser também às vezes materialização sonora ou corpórea de uma nostalgia bêbada delirante boba e infantil que faz chorar e que consola uma dor compartilhada... (aliás, na escolha assumidamente “apelativa” das músicas talvez apareça um desejo de cumplicidade com uma ingenuidade proibida que nos atravessa quando queremos tocar a paixão e a vitalidade). A dimensão do compartilhamento me parece ainda um valor (Laurence Louppe nos lembra que tão importante quanto um ou mais programas estéticos, a dança contemporânea é afirmação de determinados valores, mesmo quando não o assume), que, no entanto, por vezes, pode tropeçar nas armadilhas da metalinguagem, da carnavalização ou da ridicularização (estratégias de ruptura fundamentais, mas amiúde demolidoras de alguma coisa que valeria olhar um pouco mais). O risco de um ridículo não premeditado nem artificialmente criado interessaria muito aqui...
    Barthes cita um dos sofrimentos de Werther, que se queixa por sua amada apreciar mais seu “espírito e talento” que seu coração, que, no entanto, é “seu único orgulho”. Nas palavras de Barthes, “Você me espera aí onde não quero ir: você me ama aí onde não estou. Ou ainda: o mundo e eu não nos interessamos pela mesma coisa (...)”.
     O romance “Os sofrimentos do jovem Werther” provocou uma sucessão de suicídios que alarmou a Alemanha na época de sua publicação. Talvez essa história, tão absurda e inverossímil quanto só as coisas banais e cotidianas podem ser, aponte para a possibilidade de uma arte que insiste em não tentar resolver a contradição de ser desejada ali onde não está. Que considera coração também como algo outro que uma metáfora discursiva ou um clichê vencido. Fico desejando alguma coisa em nossa dança que entrevi em instantes valiosos de “Tira meu fôlego”, mas que, pretensiosamente, sinto ter sido abortada ou retirada cedo demais. Talvez sinta isso porque, pra o apaixonado, a questão seja sempre essa certa insuficiência ou morte prematura da coisa apaixonante.   

* Texto que integrará a publicação "Precisa-se público", organizada por Cláudia Müller e Clarissa Saccelli e ligada à programação das Semanas de Dança, 2014, do Centro Cultural São Paulo*