sábado, 22 de dezembro de 2007

Fragmentos-desdobramentos da viagem ao Maranhão

(Não esperem alguma coerência entre eles...)


...E então saímos todos de uma cidadezinha perdida, depois de homenagens e gratidões querendo apenas voltar pras nossas solidões coca-cola, pra trilha sonora dos avisos do metrô, do respiro entre as buzinas, cansaços, pras multidões, pra fina capa plástica do bom funcionamento de nossa civilização. Não sei se meu estômago àquela hora do dia estava um tanto revirado pelo calor ou porque era ao mesmo tempo triste e repugnante a ânsia de toda aquela gente de ir embora fugindo...
É que não fugíamos somente da miséria das crianças desnutridas, pequenas, das crianças grávidas, das crianças mudas, das crianças impossíveis, aprisionadas, da desolação, dos casebres sem comida e com televisão, da falta de sonho, dos olhos baixos, da palavra engasgada na garganta... também disso... mas, e com mais empenho, fugíamos porque precisávamos reafirmar nossa própria ilusória bem-aventurança de viver onde tudo acontece, de nos reconhecer nos atores das novelas e nos modelos das propagandas, e de achar que o shampoo que usamos deixa nossos cabelos iguaizinhos aos da moça da embalagem e que por isso vale a pena estarmos aqui e não termos mais horizonte pra descansar os olhos... Pra não ter de nos dar conta de que a miséria da qual fugíamos é também a nossa e de que aquele encontro com a pobreza não comprovava a carência do outro, mas apenas confirmava que tanto ele como nós, pra além das dores da barriga vazia, está igualmente flutuando no vazio de preencher as horas com alguma coisa que faça sentido, enquanto sentimos essa ânsia impossível de um colo ou canção que se anuncia sem chegar...


...J., minha querida, você me perguntou se eu também já tinha me machucado assim e nem precisei te responder, já que afinal só nossa figura já é também discurso, memória, canção, ao menos quando estamos realmente ali, a ponto de perceber esse silêncio de algodão nos nossos sorrisos... J., eu estava completamente perdido na tarefa de dizer alguma coisa que te ajudasse de algum modo a encontrar tua própria bússola, mas não é que eu fui descobrir que afinal o que estava perdido, esperando ser encontrado, é um outro igualmente tateando onde está... E de repente nossos passos já não configuravam um zanzar, mas um caminho...


... O bom de termos memória, entre tantas coisas, é que graças a ela carregamos conosco pra sempre ao menos um pouco de cada um que encontramos, e isso faz com que cada novo encontro com um novo outro também seja um encontro desses milhares de outros que passaram por nossas vidas com esse alguém novo. E assim, se multiplicam os encontros e as trocas ao infinito, e cada novo encontro é a humanidade se olhando a si mesma... só que de um jeito irrepetível, irreproduzível, porque é única essa combinação de encontros na intensidade daquele específico, daquela mistura única de memórias e anseios... é porque somos todos tão iguaizinhos que também somos absolutamente únicos, cada um...


...Procurava nas estrelas daquele dia onde estaria você e se o brilho dos teus olhos teria o sabor que eu imaginava, e se eu ainda ia poder tocar teu rosto como quando o vento leva meus sonhos pra longe...
Constelações só aparecem quando alguém olha o céu mais devagar, buscando aquilo que secretamente sabemos que está lá... É preciso olhar devagar (e acreditar), pra que o que sempre se soube se revele...

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Nanas de la cebolla

(Só pra dividir com os possíveis leitores desse blog. Poema de Miguel Hernandez, poeta espanhol morto na prisão durante o regime franquista na Espanha, dedicado a seu filho depois de ele receber uma carta de sua mulher contando que o menino não comia nada além de pão e cebola)

Nanas de la cebolla
Miguel Hernández

La cebolla es escarcha
cerrada y pobre.
Escarcha de tus días
y de mis noches.
Hambre y cebolla,

hielo negro y escarcha
grande y redonda.

En la cuna del hambre
mi niño estaba.
Con sangre de cebolla
se amamantaba.
Pero tu sangre,
escarchada de azúcar
cebolla y hambre.

Una mujer morena
resuelta en lunas
se derrama hilo a hilo
sobre la cuna.
Ríete niño
que te traigo la luna
cuando es preciso.

Tu risa me hace libre,
me pone alas.
Soledades me quita,
cárcel me arranca.
Boca que vuela,
corazón que en tus labios
relampaguea.

Es tu risa la espada
más victoriosa,
vencedor de las flores
y las alondras.
Rival del sol.
Porvenir de mis huesos
y de mi amor.

Desperté de ser niño:
nunca despiertes.
Triste llevo la boca:
ríete siempre.
Siempre en la cuna
defendiendo la risa
pluma por pluma.

Al octavo mes ríes
con cinco azahares.
Con cinco diminutas
ferocidades.
Con cinco dientes
como cinco jazmines
adolescentes.

Frontera de los besos
serán mañana,
cuando en la dentadura
sientas un arma.
Sientas un fuego
correr dientes abajo
buscando el centro.

Vuela niño en la doble
luna del pecho:
él, triste de cebolla,
tú satisfecho.
No te derrumbes.
No sepas lo que pasa
ni lo que ocurre.