CORPO E EDUCAÇÃO INFANTIL
Pedro Rodrigo Peñuela
Sanches
(Texto originalmente produzido para a Revista Catavento, publicação interna do Centro de Convivência Infantil do Palácio dos Bandeirantes, SP - setembro de 2011)
Atualmente,
num mundo tão urbanizado e industrializado, é cada vez mais comum vivermos um
cotidiano de distanciamento em relação a nossos corpos. Um grande número de
pessoas acorda de manhã com o auxílio do despertador, regula seu corpo de
acordo com o tempo do relógio, e passa grande parte do dia em posição sentada
(no automóvel, no local de trabalho, etc.), em ambientes artificiais, usando
muito pouco o próprio corpo[1].
Ao
mesmo tempo, temos sido bombardeados por uma quantidade muito grande de estímulos
visuais e auditivos. Essa estimulação constante faz com que momentos de
silêncio, de pausa, de repouso ou relaxamento sejam cada vez mais raros,
criando um tipo de “vício de estimulação”[2]:
as pessoas passam a necessitar de estímulos cada vez mais fortes para realmente
percebê-los.
Além
disso, o corpo é também alvo de uma produção muito intensa de imagens e de ideais
de beleza, o que gera em muitas pessoas o sofrimento de sentir-se tendo um
corpo inadequado, feio, aquém dos ideais que aparecem nos programas de TV, nas propagandas,
revistas, etc.
Essa realidade
afeta especialmente o desenvolvimento das crianças e transforma sua forma de
brincar e de estar no mundo.
Há algumas
décadas, mesmo em uma cidade como São Paulo, as crianças, desde cedo podiam
fazer grandes deslocamentos pela cidade[3],
descobrindo seus mistérios, explorando suas possibilidades, criando seus
próprios brinquedos, e envolvendo profundamente seus corpos nas brincadeiras.
Hoje, porém,
as crianças vivem em ambientes cada vez mais restritos, a cidade se tornou
perigosa e cheia de carros, e a brincadeira tem se limitado aos jogos
eletrônicos e à televisão.
O corpo vai adormecendo;
o tato e o olfato ficam quase esquecidos; a visão e a audição desde muito cedo
passam a ser quase os únicos sentidos estimulados, as interações com as outras
crianças diminuem, como diminui também o acesso aos espaços naturais e às
possibilidades de construir os próprios brinquedos... essa riqueza de
experiências, que em outros tempos povoavam a vida das crianças, se perde
rapidamente.
Tendo isso em
vista, o trabalho com o corpo passa a ter cada vez mais importância na
educação, e especialmente na educação infantil. Por isso, desde 2009, temos
feito semanalmente no CCI oficinas de “Expressão corporal”, que são pensadas como
um modo de deixar as crianças redescobrirem suas possibilidades de movimento,
brincarem com o corpo, conhecerem o mundo usando todos os sentidos, e enfim,
libertarem-se de alguma forma, das restrições e aprisionamentos aos quais seus
corpos vêm sendo submetidos.
As
aulas são baseadas na linguagem da dança e das artes do corpo, pois entendemos
que, como coloca a educadora Yvonne Berge, “a dança (...) educa a receptividade
sensorial e suscita um sentido novo, que (...) torna-se ponto de referência
para o qual nos voltamos espontaneamente, e que nos permite tornarmo-nos
receptivos, como o pescador ao peixe, o caçador à caça, e o navegante ao vento.[4]”
Nesse
sentido, buscamos criar um espaço em que a criança possa experimentar
diferentes formas de movimentação, sem sentir que precisa mover-se de uma
determinada maneira, conforme algum padrão de “certo” ou “errado”. A idéia
principal é, pouco a pouco, “criar um clima de distenção que permita à criança
o direito de errar, de ser simplesmente ela mesma[5]”.
Portanto, não
queremos que as oficinas sejam vividas pelas crianças como mais uma tarefa a
ser cumprida, mas que sejam um espaço de respeito ao seu tempo e ritmo próprios.
Tendo
como base esse posicionamento, propomos brincadeiras de movimento, dramatizações
de cenas e de histórias, imitação de animais, personagens, objetos, e momentos
de fantasia compartilhada, etc. a fim de abrir espaço para que as crianças
desenvolvam ou descubram seu equilíbrio postural e uma distribuição mais
saudável do peso e do tônus muscular, e também despertem os sentidos do tato,
do olfato e do paladar, bem como a ligação entre a visão, a audição e o movimento.
Também
procuramos deixar que as crianças vivenciem momentos de desorientação, pequenas
quedas, e que possam girar, saltar, soltar o peso do corpo em uma superfície
amortecida, andar sobre terrenos irregulares, etc. para descobrir suas
possibilidades de equilíbrio e encontrar soluções com o próprio corpo em diversas
situações.
Esse
trabalho tem trazido desafios e descobertas muito especiais. No grupo 2, as
crianças estão terminando o processo de conquistar a capacidade de ficar em pé,
então o aprendizado com as quedas e as situações de desequilíbrio é bastante
valioso. Lembro claramente de quando as crianças desse grupo descobriram que podiam pular de um caixote ao outro
confiando em seu próprio equilíbrio e perdendo aos poucos o medo, buscando desafios
maiores.
No
grupo 3, as crianças já conquistaram mais possibilidade de movimento e começam
a estar mais atentas ao coletivo e às possibilidades de brincarem em grandes
grupos. Nessa idade, elas começam a descobrir o prazer de uma brincadeira como
o pega-pega, e a conseguir esperar a vez de cada um para ser o pegador ou o
fugitivo na brincadeira. Também com as crianças dessa idade, criamos juntos,
desde o ano passado, uma brincadeira de fantasia que eles adoram, a “floresta
do Beleléu”: todos juntos subimos em um avião e voamos até uma floresta, onde
mora o Beleléu. Lá subimos montanhas, nadamos em rios e cachoeiras,
atravessamos tempestades, furacões, e nos transformamos em animais (fantásticos
ou não), enquanto procuramos pelo Beleléu.
Algumas
crianças criam soluções muito criativas para representar certos personagens ou
objetos apenas com os movimentos, como quando uma das crianças, por exemplo, criou
sozinha um gesto muito engraçado com as mãos para representar um helicóptero,
quando todos estávamos paralizados, sem saber como representá-lo.
Com
o Grupo 4, já podemos nos aventurar em criações de coreografias e
improvisações. As crianças adoram dançar, especialmente com o apoio de objetos,
bonecos, marcas no chão, etc. Em uma brincadeira como a “Dança das Caveiras”
(cantada por Bia Bedran), pedimos que cada um criasse uma ação nova, diferente
das ações já definidas pela música, e elas se apropriaram dessa idéia de forma
muito rica: algumas trouxeram o universo dos videogames, ou dos desenhos
animados (propondo que as caveiras deveriam pegar armas, se transformar em
monstros, etc.), outras criaram ações mais aventureiras, como escalar
montanhas, ou ações mais ligadas ao mundo da brincadeira, como jogar futebol, ou
da fantasia, como se transformar em um animal.
Com as
crianças dessa faixa etária, já conseguimos criar danças mais brincadas e mais
improvisadas, inclusive para as apresentações de final de ano, o que nos ajuda
a desmistificar a idéia comum de que só seria apresentável uma dança toda
fechada e definida, imposta às crianças em ensaios desinteressantes e
monótonos. Com elas, os ensaios e a preparação das apresentações também podem
ser momentos de brincadeira, e da aparente bagunça, vão surgindo os movimentos
e as formas, e a dança flui...
[1] Uma discussão
mais completa sobre isso pode ser encontrada em LE BRETON , D. Adeus ao corpo. São Paulo: Papirus,
2003.
[2] Ver SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. Em:
VELHO, O. G. (org.), O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Zahar, 1967.
[3] Ver, por
exemplo, LIMA, M. S. A cidade e a
criança. São Paulo: Nobel, 1989.
[4] BERGE,
Y. Viver o seu corpo. São Paulo:
Martins Fontes, 1981, p. 25-26.
[5] Idem, p.
30.