quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Pássaro

Relato de experiência no Programa de Iniciação Artística[1]

Pedro Penuela


“No reino de uma imaginação criadora aérea, o corpo do pássaro é feito do ar que o cerca, e sua vida do movimento que o arrebata”
(Gaston Bachelard[2])


            No CEU Cantos do Amanhecer, nas turmas das quintas-feiras (de 5  a 7 anos e de 8 a 10 anos), instados pela participação das crianças em um sarau na Biblioteca, experimentamos propor a elas dançar (ou "corporificar") fragmentos de poemas de Manoel de Barros:

            “Quis pegar/ entre meus dedos/ a Manhã./ Peguei vento”
(versos retirados do poema “A menina avoada”) [3]

 “Escuto o meu rio:/ é uma cobra/ de água andando/ por dentro de meu olho”
(versos de “Poeminhas pescados numa fala de João”)

“Vento?/ Só subindo no alto da árvore/ que a gente pega ele pelo rabo”
(idem)

 “As plantas/ me ensinavam de chão./ Fui aprendendo com o corpo.// Hoje sofro de gorjeios/ Nos lugares puídos de mim./ Sofro de árvores”
(versos de “Na fazenda”)

            Estes (e outros) trechos de poemas eram sussurrados no ouvido de cada criança, que, então, traduzia as sensações e imagens suscitadas pelo poema em uma performance silenciosa, envolvendo o corpo todo em movimento[4]. Em seguida, o poema era lido em voz alta.
O resultado dessa experimentação foi bastante impactante e nos maravilhou diante da abertura própria da corporeidade das crianças ao imaginário poético, do caráter tão imediato de sua comunicação com esse imaginário e de sua capacidade de traduzi-lo em presença corporal e gesto. Como coloca Laurence Louppe, “o corpo não é anterior ao seu próprio movimento; não existe uma substância-corpo prioritária, mas uma rede de interferências e de tensões através da qual o sujeito é constituído pelo próprio meio”[5]. A corporeidade brincante e móvel das crianças parece nadar em um universo próprio de ressonâncias e articulações entre os elementos materiais, que tenderíamos a reconhecer como desarticulados. Corpo em devir. Nas palavras precisas de Bachelard, “ao finalismo prático dos órgãos, exigido pela imperiosa necessidade das exigências imediatas, corresponde um finalismo poético que o corpo detém potencialmente”[6].
Nesta experiência, as sensações-imagens evocadas pela poesia de Manoel de Barros engendraram quase imediatamente no corpo a memória de certa intimidade com a natureza, que se revela no gesto das crianças, mesmo quando vivem em um ambiente urbano onde os pássaros, os rios, a mata, a terra, o vento, o céu parecem cada vez mais difíceis de acessar.
Além disso, cabe notar que os trânsitos entre palavra poética e corpo poético apontam possibilidades ricas de leitura e recepção do texto poético para além do “entendimento” verbalizado, e que podem ser pensadas como uma forma de “tradução intersemiótica”, isto é, de tradução de uma obra desde um sistema de signos para outro sistema de signos[7]. Ou ainda, para além da noção de tradução, a transposição da palavra para o movimento do corpo implica uma recriação, em que a apropriação do poema não se dá de maneira linear ou fiel, mas como um espaço de co-autoria, de reorganização da enunciação da obra original, de acordo com caminhos de afetos e apreensão singulares de cada recriador.
Vale dizer, ainda, que esse espaço transicional entre sistemas de signos (no caso, entre poesia e dança) implica uma maneira que nos parece potente e relevante de atuação sobre o princípio da “interlinguagem”, um dos eixos do Programa, na medida em que, não se trata de articular as linguagens dentro de algum tipo de hierarquização (em que uma linguagem é subsidiária à outra, como, por exemplo, quando se tenta “dançar a música” ou fazer uma produção visual como fundo de uma cena teatral) ou de sucessão linear (como, por exemplo, quando se recorre à dança como “aquecimento” para uma criação dentro de outra linguagem, ou à criação plástica como “registro” de outra criação), mas instaurar um espaço de diálogo, de trânsito recriador, assumindo as tensões, os silêncios, precariedades e potências próprios de cada sistema de signos (de cada “linguagem artística”, no caso), no encontro.


                                                                               Foto: Ana C. Anjos

Nesse sentido, afetados por esse engendramento poesia-corpo e interessados nas possibilidades desse trânsito “intersemiótico”, fomos seguindo uma trajetória um tanto noturna, subterrânea, de associações de imagens poéticas e temas, que nos levou à imagem do pássaro (já insinuada no nome do livro de onde tiramos os poemas lidos inicialmente, “Compêndio para uso dos pássaros”) e à história do Uirapuru[8], mito de povos originários da Amazônia, que narra a origem do pássaro que canta um dos cantos mais bonitos da floresta dessa região.
Gaston Bachelard, já citado aqui, ao discutir o imaginário poético associado ao elemento ar, dá especial importância aos pássaros: “O pássaro é uma força ascencional que desperta a natureza inteira”[9].
Em alguns de nossos passeios com as crianças nas áreas externas do CEU, desde o início deste ano, propusemos que todos ficassem em silêncio e que quem escutasse o canto de um pássaro, levantasse a mão. A referência aos pássaros costuma sempre criar um silêncio amplo, denso, com uma qualidade bem especial – vontade de contato, de proximidade, sonho de voo. O canto nos aproxima, pulsar vindo do corpo do pássaro que viaja pelo ar e chega a nós como indício de sua presença, um pouco como a luz, que carrega a imagem de uma estrela depois de um percurso de milhares de anos pelo espaço. Pássaros e estrelas parecem falar de alguma coisa distante e ao mesmo tempo intimamente reconhecida. As crianças gostam de ouvir e de buscar o canto dos pássaros, como gostam de correr sentindo o vento atravessar o corpo, estendido por panos e objetos esvoaçantes. “Para a imaginação dinâmica, o voo é uma beleza primeira”[10].
O Uirapuru é um pássaro-canto, um índio apaixonado que tocava flauta, isto é, que fazia do ar-vento sua matéria de expressão (vento atravessando o corpo e, dele, impulsionado para atravessar o corpo do instrumento, e fazê-lo vibrar – metáfora de um encontro amoroso com a matéria do instrumento, o vento que sai do corpo fazendo-o soar). Som e vento foram delineando esse modo pássaro de criar que íamos construindo.
Partindo da história deste pássaro, que narramos para as crianças acompanhando-a por sons de instrumentos feitos de materiais como madeira e sementes (materiais próximos de elementos mais primários, mais diretamente ligados à terra e sua matéria – tipo de materialidade com que temos prioritariamente trabalhado neste ano), propusemos diferentes ações evocativas dos pássaros (e da intimidade entre ar-vento e corpo) – dançar com panos leves em frente a um ventilador, dançar e correr com fitas metalizadas que ondulam no ar, jogos de improvisação com o apoio desse tipo de objeto leve (fitas, tecidos, penas...), correr pelo ar livre e sentir o vento[11].


                                                                             Foto: Ana C. Anjos

Em seguida, mostramos às crianças videos da coreografia de Luc Petton, “A confiança dos pássaros” (La confidènce des oiseaux)[12], em que bailarinos interagem com pássaros vivos, que voam pelo palco e pousam por vezes em seus corpos e em alguns suportes de madeira neles equilibrados. Inspirados por essa coreografia, brincamos de alternar os papeis do bailarino que dança lentamente, oferecendo partes de seu corpo como galhos de uma árvore, esperando o pássaro chegar e pousar, e o papel dos pássaros, que voavam-corriam abrindo e batendo suas asas-tecido e pousando de vez em quando no corpo de alguma criança-bailarino.
Ao equilíbrio dos suportes para o pouso dos pássaros, associamos, mais tarde, os móbiles de Alexander Calder e as “esculturas de ar” de Daniel Wurtzel[13], desdobrando essa temática em produções plásticas.
O corpo fluido e leve do pássaro em voo, corpo que imaginamos quase como puro movimento, feito do próprio espaço e nele sustentado, nos lembra e nos desperta o afeto de um corpo múltiplo, corpo em devir, fluxo de possibilidades e estados inconcebíveis a priori – “na maior parte do tempo, diferentes corpos circulam, visíveis ou invisíveis, no interior dos corpos dançantes, como vagas misteriosas, cujas referências corporais se confundem ou se sobrepõem”[14]. Dançar é também um pouco ser pássaro, ser o movimento e fluir no tempo (“fluir na imanência”, nas palavras do filósofo José Gil), como soprar uma flauta ou fazer do fôlego o canto é também encontrar um corpo-vento sonoro, corpo que faz do ar e do espaço elemento de atrito contra seus túneis e paredes internos, criador de vibrações e ondas no ar de fora. Como o flautista ancestral tornado pássaro, vamos descobrindo os desconhecidos e infinitos em que podemos nos transformar – o que não deixa de ser uma maneira nossa de voar.

* Texto publicado também em: ensaiosPIA *



[1] Programa da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Mais sobre o PIA: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/
[2] Bachelard, Gaston. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 69.
[3] Barros, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, pp. 96, 97, 98 e 115
[5] Louppe, Laurence. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012, p. 77.
[6] Bachelard, Gaston. Op. cit., p. 9.
[7] Cf. Diniz, Thaís F. N. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. In: Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 313-338, 1998.
[8] Cf. Boff, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil. São Paulo: Salamandra, 2001.
[9] Bachelard, Gaston. Op. cit. p. 70.
[10] Bachelard, Gaston. Op. cit. p. 66.
[11] Link de um video com algumas dessas performances das crianças: https://www.youtube.com/watch?v=Bxxbmst5cWs&list=UUxR3lAUvAqnaeOeLBwJmyVg
[12] Vídeos desse trabalho podem ser vistos em:
[13] Mais informações sobre o trabalho deste artista em: www.danielwurtzel.com/
[14] Louppe, Laurence. Op. cit., p. 81.

sábado, 11 de outubro de 2014

Da matéria dos sonhos (sobre "Rêverie", de Morena Nascimento e Carolina Bianchi)

                                                                             Foto: Biel Machado


"Rêverie" me emocionou de uma maneira ainda difícil de explicar e ficou povoando meus dias depois de tê-lo visto, com reminiscências e canções e uma alegria estranha e igualmente difícil de explicar que parecia ter a ver com uma sensação difusa de um furo no tempo, uma travessia ou simultaneidade entre coisas de tempos diferentes. 
Difícil dizer e a dificuldade de dizer é bem um atravessamento para esse texto... (a escrita é também uma dor).

Palavra e coisa

This is not my hand, um inglês com sotaque. Porque há uma tensão velha conhecida entre palavra e coisa, palavra e experiência que faz toda língua ser estrangeira, toda palavra um hiato e uma negociação frágil com o silêncio, com o que ela não atinge e mata e empurra pra uma outra camada – “fiapos de afetos”, na expressão de José Gil, veiculados num certo inconsciente vivo e intenso que vai atravessando o gesto, a presença...

Presença

Escutei Jérôme Bel dizendo em um trabalho cênico seu que o específico do teatro e das artes da cena é a presença real de alguém. Essa seria a diferença e a potência própria do teatro em relação ao cinema ou à televisão, por exemplo. 
São evidentemente conhecidas as implicações dessa discussão, as armadilhas desse “real” e os dispositivos de distanciamento e metalinguagem desde Brecht ou tantos outros que nos alertam para a artificialidade, a ficcionalidade da cena (como igualmente da “realidade” e seus protocolos previsíveis), os limites da catarse ou da intenção de mímese. Morena parece saber bem de tudo isso. E mais. Os cortes na música cantada com tanto transbordamento e que vai convocando a emoção quase para o típico momento apoteótico de chorar e circular coletivamente uma dor meio ficcional, meio desejada, golpeiam a possibilidade desse tipo de experiência conhecida, mas, penso que não a serviço de alguma ironia ou intenção de desconstrução de alguma coisa. Pois, os cortes e a volta da voz e do gesto a cada vez que a luz retorna, vão escavando a ação e aproximando-a de alguma coisa mais difícil de nomear e capturar numa emoção já codificada, mas talvez por isso mesmo mais próxima. Como nos trabalhos de Pina Bausch, a repetição torna de todos aquilo que era uma memória singular do bailarino. O trágico e o patético se imbricando e sendo alguma outra coisa, muito de todos, e justamente por isso, muito específica de cada um.

Voz

O canto de Morena atravessado pelo de Joan Baez, vencido por ele, guardado por ele, acolhido como reverberação, um silêncio dentro do canto que se impõe, vivo como memória subterrânea. Como coisa que morreu e fica um pouco aqui, de outro jeito. Hay muertos que no hacen ruido, y es más grande su penar. Depois, a música africana e uma dança de saudade, um corpo leve e doce, a nostalgia de algum espaço de vida junto em que os sentidos de proximidade, os cheiros e toques com o mundo e os outros talvez fossem vividos com uma naturalidade que conhecemos e sentimos ter perdido. 

Ausências

“Desejo que você obtenha tudo o que ninguém pode te dar”, disse uma empregada a Clarice Lispector. As sombras dançam uma dança que parece estar em outro tempo, uma presença subterrânea, como a da memória e do ausente – o que ninguém pode te dar. Como nos sonhos de solidões das mulheres, compostos por Grete Stern, ela própria esquecida mais tarde em um apartamento em Buenos Aires fazendo exercícios para as articulações desgastadas... uma imagem ordinariamente trágica e ficcional, ordinariamente comum e nossa, única, seu olhar de senhora alemã-argentina cheia de pertencimentos perdidos e saudades ácidas europeias e uma ternura (falo da Grete Stern que vi num video, gravado pouco antes de sua morte, bastante tempo depois das fotocolagens)...

Muito perto

Morena e Carolina subvertem a visão como sentido de distanciamento e a palavra como morte da coisa. Se a palavra tenta fixar precariamente a fluidez do real, esse sobra nos buracos da linguagem e, em certas experiências, como em Rêverie, escorre por ela e com ela e nos deixa empapados como só com a chuva acontece. Ficamos muito perto. A palavra e o corpo são convites, menos como enunciados, mais, talvez, como carinhos ou golpes ou um dar as mãos. Além de um corpo que contagia por sua dança e nos faz dançar ou mobilizar corpos virtuais, um corpo que nos dança, ou dança que nos corporaliza, água, emotionalen Sturm. “Eu adoro essa música”...


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Paixão sem objeto

Paixão sem objeto:
Texto sobre "Tira meu fôlego" (Direção e concepção Elisa Ohtake)

    Pela segunda vez, tive a experiência inquietante de assistir a “Tira meu fôlego”, espetáculo tão desejado e entusiasmante, entre outras razões por procurar responder a certo estado de coisas na dança que parecia apontar pra quase impossibilidade da vitalidade, da crueza, da emocionalidade, do atravessamento afetivo... exceto quando organizado (e assim, por tantas vezes, castrado, distorcido, desviado) por uma racionalidade asceticamente clarificada, pela rápida e astuciosa coerência conceitual, pela justificativa convicente exigida nos editais e universidades.
    “Tira meu fôlego” promete partir da emoção, promete “máxima potência”, questiona possibilidades do afeto num universo de capturas sensacionais, num contexto de mercantilização das emoções e encontros. Promete um retorno a alguma coisa que perdemos? Fiquei querendo demais ver, desde que li o texto de Elisa Ohtake apresentando-o, e colocando tão bem e claramente questões que esticam, contorcem, dilematizam e inquietam aos atravessados de alguma maneira pela dança hoje.
    Uma ambiguidade incômoda, mobilizadora percorreu meu encontro com o trabalho. A ironia, o pastiche, a exacerbação dos clichês, o non-sense, o humor como recurso deliberado e constante, as pausas típicas dos comediantes stand up iam delimitando e organizando (ainda que o método e a racionalização fossem igualmente ironizados) corporeidades tão extraordinárias na sua potência, ao mesmo tempo fulgurante, contagiante (quantas danças que literalmente moveram meu corpo!), ao mesmo tempo um tanto interditada, velada, deslocada sempre um pouco mais pra lá.
     Naquele palco, os apaixonados não sofrem por ninguém, não se remetem a ninguém. Precisam provar sua paixão, sem considerar objeto. A ausência de tal objeto por quem se apaixonar (uma pessoa, uma coisa, uma memória, um rastro, o que seja) tem muitos efeitos. Um dos mais imediatos a meu ver é a impossibilidade de singularização. Não estamos diante de uma paixão específica e narrável (talvez então de uma abstração? de uma paixão como ideia? de qualquer paixão? ou de todas? O que também seria o mesmo que nenhuma). Ao não se remeterem a uma experiência singular de paixão, os bailarinos criadores talvez recusem ou desafiem nosso voyerismo curioso (ou consumista? sensacionalista? fofoqueiro?) de entrever afinal sua paixão, seu modo de apaixonar-se, sua história ou sua paixão “real” corporificada, presente ali, exibida em cena como se isso fosse possível e visível.
     Ao mesmo tempo, de fato, a paixão fora da cena parece muitas vezes alguma coisa sem objeto, encenação que protagonizamos e ao mesmo tempo dirigimos distanciadamente, desde algum lugar não muito claro, sofrida como um sintoma histérico, enraizado no corpo, materialmente pulsante, mas também, por outro lado, estranho à matéria e à verdade do sujeito.
    Afinal o que promete este espetáculo ou qualquer outro espetáculo com relação à vitalidade da vida mesma? É clara a recusa em espetacularizar a paixão. A ironia e o sarcasmo, a ridicularização e o clichê evidenciam que certa promessa de vitalidade total é sempre relativa, sempre está em tensão com a ficcionalidade intrínseca à cena.
    E no entanto é tão delicioso imaginar que será ainda possível encontrar “uma luta bonita de ver, uma luta entre a ironia e o fazer pra valer, entre o “blasesismo” nosso de cada dia e a vontade total”. (texto de Elisa Ohtake ).
    Talvez certa leitura de Barthes ou de outros tantos nos obrigue a sensatamente considerar a paixão (e a vitalidade?) um efeito de discurso, uma construção insustentavelmente contraditória, ou um reflexo condicionado, mas há a promessa de alguma coisa menos delimitável e contingente...
    Confesso que nos momentos em que me senti realmente prestes a estar ali junto com alguém que corria o risco de cair no abismo do ridículo (e do maravilhoso e trágico) que é um ser apaixonado ou um ser que em cena de fato afete-se ao afetar o outro pra além do artifício; quando estava prestes a algo assim (vontade de um gozo estético “real” desejado ansiado talvez impossível talvez proibido por certo contexto e estados das coisas na dança?), logo uma piada, um pedido deliberadamente fake de ajuda me tirava dessa volúpia (ou voracidade consumista de público acostumado com entretenimento e indústria cultural) que seria querer alguma coisa tipo catarse, querer me ver ali no outro ou encontrar na pessoa do performer alguma pessoalidade “real”, alguma confissão de sua própria paixão ou de sua maneira própria de viver essa coisa tão obviamente ridícula e tão fortemente humana, que resiste.
    Estou me repetindo e sei que este texto não tem linearidade ou estrutura lógica satisfatórias. Mas é uma forma de dizer que talvez pra além do pastiche e da ironia, o recurso ao que parece “apelativo” e demasiado comprometido com uma lógica da captura da emoção pode ser também às vezes materialização sonora ou corpórea de uma nostalgia bêbada delirante boba e infantil que faz chorar e que consola uma dor compartilhada... (aliás, na escolha assumidamente “apelativa” das músicas talvez apareça um desejo de cumplicidade com uma ingenuidade proibida que nos atravessa quando queremos tocar a paixão e a vitalidade). A dimensão do compartilhamento me parece ainda um valor (Laurence Louppe nos lembra que tão importante quanto um ou mais programas estéticos, a dança contemporânea é afirmação de determinados valores, mesmo quando não o assume), que, no entanto, por vezes, pode tropeçar nas armadilhas da metalinguagem, da carnavalização ou da ridicularização (estratégias de ruptura fundamentais, mas amiúde demolidoras de alguma coisa que valeria olhar um pouco mais). O risco de um ridículo não premeditado nem artificialmente criado interessaria muito aqui...
    Barthes cita um dos sofrimentos de Werther, que se queixa por sua amada apreciar mais seu “espírito e talento” que seu coração, que, no entanto, é “seu único orgulho”. Nas palavras de Barthes, “Você me espera aí onde não quero ir: você me ama aí onde não estou. Ou ainda: o mundo e eu não nos interessamos pela mesma coisa (...)”.
     O romance “Os sofrimentos do jovem Werther” provocou uma sucessão de suicídios que alarmou a Alemanha na época de sua publicação. Talvez essa história, tão absurda e inverossímil quanto só as coisas banais e cotidianas podem ser, aponte para a possibilidade de uma arte que insiste em não tentar resolver a contradição de ser desejada ali onde não está. Que considera coração também como algo outro que uma metáfora discursiva ou um clichê vencido. Fico desejando alguma coisa em nossa dança que entrevi em instantes valiosos de “Tira meu fôlego”, mas que, pretensiosamente, sinto ter sido abortada ou retirada cedo demais. Talvez sinta isso porque, pra o apaixonado, a questão seja sempre essa certa insuficiência ou morte prematura da coisa apaixonante.   

* Texto que integrará a publicação "Precisa-se público", organizada por Cláudia Müller e Clarissa Saccelli e ligada à programação das Semanas de Dança, 2014, do Centro Cultural São Paulo*

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Meteorito

"Na estética da dança, o valor do espetáculo conseguido é, frequentemente, secundário se comparado com o brilho perdido que atravessa como um meteorito um momento de dança, que condensa em si a carga das perturbações do corpo do bailarino e do espectador. Todos procuramos tais momentos siderais e o traço indelével que deixam na nossa história, apesar da fugacidade inatingível da sua passagem. Eu defendo a poética dessas ressonâncias transubjetivas."

Laurence Louppe ("Poética da dança contemporânea")

sábado, 17 de maio de 2014

"Pindorama" - para Lia Rodrigues


Foto: Sami Landweer

Talvez o estrago já tenha sido feito, e não parece haver tempo pra descansar.
Do material opaco e inerte nasce um ar bom e nosso corpo ainda parece dar vida quando já não se esperava nada além das mesmas coisas de sempre.
Respiramos mais em meio ao caos do que na confortável vida besta?
No silêncio mudo dos olhares ainda se escondem tempestades? Na cidade, no deserto entre os corpos apertados uns contra os outros, ansiamos por um vento que nos leve e traga um corpo vivo, como a maré faz com os cadáveres. Impassíveis em sua dureza.
E ainda nos perguntamos se os ossos estão alinhados ou em que data mataram a coreografia e o que é dança contemporânea?
Em algum momento quisemos insistir também e agora nos perguntamos se ela vai continuar. (Torcendo talvez pra que não, pra que ela vá embora e pare de nos lembrar de quando desistimos. ?). Nossos corpos são membranas cheias d’água e também é bonito quando estouram e espalham um pouco de si a cada lugar. Talvez a morte também seja um jeito de habitar mais lugares, um pouco de mim se dissipando e acarinhando tudo. Pequenas poças por um instante sagradas, como tudo que será pisado em seguida. O mundo é um.
A nudez dos bailarinos – um silêncio – nos desveste muito mais. Risinhos e piadinhas nervosas parecem querer nos colocar em nossos devidos lugares. Mas você se divertiu? O que vamos comer depois?
Os gritos têm uma vida nova como cheiro de um limão.
Água respingando no rosto.
E ainda precisamos tanto uns dos outros.
É um desespero e uma alegria que apesar de tudo e depois de tanto, continuemos juntos. Do caos andamos na linha mais reta e da viscosidade de nossos líquidos escorre uma geometria mais precisa. Da terra seca, o corpo do outro é uma fonte impossível, e é a única que há (quero que seja a melhor). E queremos e precisamos nos engalfinhar, e agarrar e apertar a carne. Há uma delícia bruta enquanto vamos juntos nos engolfando e nós – quem sabe esse cheiro de estar perto nos salve da violência limpa e branca que inventamos pra fugir dessa tempestade. Por que o mar pulsa e nos chama e quer nos levar.


"(...) Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano." (W. Benjamin)

* Texto publicado também no projeto 7x7 *

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Quintana

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.


Mário Quintana