Relato de experiência no Programa de Iniciação Artística[1]
Pedro Penuela
“No reino de uma imaginação criadora aérea, o corpo do pássaro é feito do ar que o cerca, e sua vida do movimento que o arrebata”
(Gaston Bachelard[2])
No CEU Cantos do Amanhecer, nas turmas das quintas-feiras (de 5 a 7 anos e de 8 a 10 anos), instados pela participação das crianças em um sarau na Biblioteca, experimentamos propor a elas dançar (ou "corporificar") fragmentos de poemas de Manoel de Barros:
“Quis pegar/ entre meus dedos/ a Manhã./ Peguei vento”
(versos retirados do poema “A menina avoada”) [3]
“Escuto o meu rio:/ é uma cobra/ de água andando/ por dentro de meu olho”
(versos de “Poeminhas pescados numa fala de João”)
“Vento?/ Só subindo no alto da árvore/ que a gente pega ele pelo rabo”
(idem)
“As plantas/ me ensinavam de chão./ Fui aprendendo com o corpo.// Hoje sofro de gorjeios/ Nos lugares puídos de mim./ Sofro de árvores”
(versos de “Na fazenda”)
Estes (e outros) trechos de poemas eram sussurrados no ouvido de cada criança, que, então, traduzia as sensações e imagens suscitadas pelo poema em uma performance silenciosa, envolvendo o corpo todo em movimento[4]. Em seguida, o poema era lido em voz alta.
O resultado dessa experimentação foi bastante impactante e nos maravilhou diante da abertura própria da corporeidade das crianças ao imaginário poético, do caráter tão imediato de sua comunicação com esse imaginário e de sua capacidade de traduzi-lo em presença corporal e gesto. Como coloca Laurence Louppe, “o corpo não é anterior ao seu próprio movimento; não existe uma substância-corpo prioritária, mas uma rede de interferências e de tensões através da qual o sujeito é constituído pelo próprio meio”[5]. A corporeidade brincante e móvel das crianças parece nadar em um universo próprio de ressonâncias e articulações entre os elementos materiais, que tenderíamos a reconhecer como desarticulados. Corpo em devir. Nas palavras precisas de Bachelard, “ao finalismo prático dos órgãos, exigido pela imperiosa necessidade das exigências imediatas, corresponde um finalismo poético que o corpo detém potencialmente”[6].
Nesta experiência, as sensações-imagens evocadas pela poesia de Manoel de Barros engendraram quase imediatamente no corpo a memória de certa intimidade com a natureza, que se revela no gesto das crianças, mesmo quando vivem em um ambiente urbano onde os pássaros, os rios, a mata, a terra, o vento, o céu parecem cada vez mais difíceis de acessar.
Além disso, cabe notar que os trânsitos entre palavra poética e corpo poético apontam possibilidades ricas de leitura e recepção do texto poético para além do “entendimento” verbalizado, e que podem ser pensadas como uma forma de “tradução intersemiótica”, isto é, de tradução de uma obra desde um sistema de signos para outro sistema de signos[7]. Ou ainda, para além da noção de tradução, a transposição da palavra para o movimento do corpo implica uma recriação, em que a apropriação do poema não se dá de maneira linear ou fiel, mas como um espaço de co-autoria, de reorganização da enunciação da obra original, de acordo com caminhos de afetos e apreensão singulares de cada recriador.
Vale dizer, ainda, que esse espaço transicional entre sistemas de signos (no caso, entre poesia e dança) implica uma maneira que nos parece potente e relevante de atuação sobre o princípio da “interlinguagem”, um dos eixos do Programa, na medida em que, não se trata de articular as linguagens dentro de algum tipo de hierarquização (em que uma linguagem é subsidiária à outra, como, por exemplo, quando se tenta “dançar a música” ou fazer uma produção visual como fundo de uma cena teatral) ou de sucessão linear (como, por exemplo, quando se recorre à dança como “aquecimento” para uma criação dentro de outra linguagem, ou à criação plástica como “registro” de outra criação), mas instaurar um espaço de diálogo, de trânsito recriador, assumindo as tensões, os silêncios, precariedades e potências próprios de cada sistema de signos (de cada “linguagem artística”, no caso), no encontro.
Foto: Ana C. Anjos
Nesse sentido, afetados por esse engendramento poesia-corpo e interessados nas possibilidades desse trânsito “intersemiótico”, fomos seguindo uma trajetória um tanto noturna, subterrânea, de associações de imagens poéticas e temas, que nos levou à imagem do pássaro (já insinuada no nome do livro de onde tiramos os poemas lidos inicialmente, “Compêndio para uso dos pássaros”) e à história do Uirapuru[8], mito de povos originários da Amazônia, que narra a origem do pássaro que canta um dos cantos mais bonitos da floresta dessa região.
Gaston Bachelard, já citado aqui, ao discutir o imaginário poético associado ao elemento ar, dá especial importância aos pássaros: “O pássaro é uma força ascencional que desperta a natureza inteira”[9].
Em alguns de nossos passeios com as crianças nas áreas externas do CEU, desde o início deste ano, propusemos que todos ficassem em silêncio e que quem escutasse o canto de um pássaro, levantasse a mão. A referência aos pássaros costuma sempre criar um silêncio amplo, denso, com uma qualidade bem especial – vontade de contato, de proximidade, sonho de voo. O canto nos aproxima, pulsar vindo do corpo do pássaro que viaja pelo ar e chega a nós como indício de sua presença, um pouco como a luz, que carrega a imagem de uma estrela depois de um percurso de milhares de anos pelo espaço. Pássaros e estrelas parecem falar de alguma coisa distante e ao mesmo tempo intimamente reconhecida. As crianças gostam de ouvir e de buscar o canto dos pássaros, como gostam de correr sentindo o vento atravessar o corpo, estendido por panos e objetos esvoaçantes. “Para a imaginação dinâmica, o voo é uma beleza primeira”[10].
O Uirapuru é um pássaro-canto, um índio apaixonado que tocava flauta, isto é, que fazia do ar-vento sua matéria de expressão (vento atravessando o corpo e, dele, impulsionado para atravessar o corpo do instrumento, e fazê-lo vibrar – metáfora de um encontro amoroso com a matéria do instrumento, o vento que sai do corpo fazendo-o soar). Som e vento foram delineando esse modo pássaro de criar que íamos construindo.
Partindo da história deste pássaro, que narramos para as crianças acompanhando-a por sons de instrumentos feitos de materiais como madeira e sementes (materiais próximos de elementos mais primários, mais diretamente ligados à terra e sua matéria – tipo de materialidade com que temos prioritariamente trabalhado neste ano), propusemos diferentes ações evocativas dos pássaros (e da intimidade entre ar-vento e corpo) – dançar com panos leves em frente a um ventilador, dançar e correr com fitas metalizadas que ondulam no ar, jogos de improvisação com o apoio desse tipo de objeto leve (fitas, tecidos, penas...), correr pelo ar livre e sentir o vento[11].
Foto: Ana C. Anjos
Em seguida, mostramos às crianças videos da coreografia de Luc Petton, “A confiança dos pássaros” (La confidènce des oiseaux)[12], em que bailarinos interagem com pássaros vivos, que voam pelo palco e pousam por vezes em seus corpos e em alguns suportes de madeira neles equilibrados. Inspirados por essa coreografia, brincamos de alternar os papeis do bailarino que dança lentamente, oferecendo partes de seu corpo como galhos de uma árvore, esperando o pássaro chegar e pousar, e o papel dos pássaros, que voavam-corriam abrindo e batendo suas asas-tecido e pousando de vez em quando no corpo de alguma criança-bailarino.
Ao equilíbrio dos suportes para o pouso dos pássaros, associamos, mais tarde, os móbiles de Alexander Calder e as “esculturas de ar” de Daniel Wurtzel[13], desdobrando essa temática em produções plásticas.
O corpo fluido e leve do pássaro em voo, corpo que imaginamos quase como puro movimento, feito do próprio espaço e nele sustentado, nos lembra e nos desperta o afeto de um corpo múltiplo, corpo em devir, fluxo de possibilidades e estados inconcebíveis a priori – “na maior parte do tempo, diferentes corpos circulam, visíveis ou invisíveis, no interior dos corpos dançantes, como vagas misteriosas, cujas referências corporais se confundem ou se sobrepõem”[14]. Dançar é também um pouco ser pássaro, ser o movimento e fluir no tempo (“fluir na imanência”, nas palavras do filósofo José Gil), como soprar uma flauta ou fazer do fôlego o canto é também encontrar um corpo-vento sonoro, corpo que faz do ar e do espaço elemento de atrito contra seus túneis e paredes internos, criador de vibrações e ondas no ar de fora. Como o flautista ancestral tornado pássaro, vamos descobrindo os desconhecidos e infinitos em que podemos nos transformar – o que não deixa de ser uma maneira nossa de voar.
* Texto publicado também em: ensaiosPIA *
[1] Programa da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Mais sobre o PIA: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/
[2] Bachelard, Gaston. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 69.
[3] Barros, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, pp. 96, 97, 98 e 115
[4] Link de um video de uma dessas performances: https://www.youtube.com/watch?v=29wGnmzlj8M&list=UUxR3lAUvAqnaeOeLBwJmyVg
[5] Louppe, Laurence. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012, p. 77.
[6] Bachelard, Gaston. Op. cit., p. 9.
[7] Cf. Diniz, Thaís F. N. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. In: Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 313-338, 1998.
[8] Cf. Boff, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil. São Paulo: Salamandra, 2001.
[9] Bachelard, Gaston. Op. cit. p. 70.
[11] Link de um video com algumas dessas performances das crianças: https://www.youtube.com/watch?v=Bxxbmst5cWs&list=UUxR3lAUvAqnaeOeLBwJmyVg
[12] Vídeos desse trabalho podem ser vistos em:
[14] Louppe, Laurence. Op. cit., p. 81.