Era uma vez um porco-espinho.
Só que diferente dos demais de sua espécie.
Por alguma razão misteriosa, o porco-espinho desta história não tinha a pele coberta de espinhos voltada para fora, mas para dentro. Era como se ele tivesse um casaco de espinhos do avesso, com os espinhos espetando a si mesmo. Um casaco impossível de tirar.
A presença dessa pele de espinhos interna tinha algumas conseqüências na vida do porquinho. A primeira é que os demais porcos-espinhos não sabiam identificá-lo como um outro da mesma espécie, assim como os outros animais não o reconheciam como tal. Todos o consideravam algum tipo de roedor comum, um rato do mato, talvez um porquinho-da-Índia. É que, ainda por cima, a parte de fora do casaco, aquela que nos outros porcos-espinhos ficava pra dentro, era toda macia e coberta de um pelo fininho, que dava a ele todo um ar (e textura) de chinchila ou coisa do tipo.
Outra conseqüência desse casaco ao contrário era que qualquer contato do porquinho com qualquer outro bicho ou coisa fazia com que os espinhos ocultos de seu casaco secreto lhe espetassem dolorosamente a pele (e os órgãos), sem que ninguém pudesse se dar conta disso. Por um tempo, por causa disso, o porquinho evitava o contato com todos, a fim de se proteger dessa dor que nem ele mesmo conseguia entender, já que ele próprio não via os espinhos que carregava lá dentro.
Acostumado a isolar-se com medo da dor inexplicável, o porquinho passou a habitar uma toca subterrânea escura. Alguns bichos da floresta onde ele vivia o admiravam por sua austeridade de eremita. Supunham que ali estaria alguém que tinha conseguido renunciar ao mundo em nome de alguma busca maior e mais nobre. Outros o achavam um bicho arrogante, que se considerava superior aos demais e por isso nem se dava ao trabalho de ir ao encontro de nada nem ninguém. Outros tinham pena dele. A maioria, com o passar do tempo, passou a simplesmente ignorá-lo.
O que ninguém, nem ele próprio desconfiava, é que num certo ano especialmente quente, com a chegada da primavera, alguma coisa dentro do porquinho começou a desabrochar como as flores estavam fazendo lá fora (sem que ele nem soubesse, acostumado que estava com a escuridão da toca). Alguma coisa mais forte do que a força do costume, do medo, do conforto do mesmo, da dor... alguma coisa mais forte que seus espinhos o impelia a sair e buscar o quê? A resposta foi se mostrando evidente: o porquinho precisava de outros bichos, de outros porquinhos. Precisava mais do que de comida, de água, da proteção da caverna, do quentinho nos dias de chuva, do fresco que o protegia do calor extremo, precisava mais do que tudo dos outros. A partir daquele momento, era (quase) como se sem os outros ele não mais existisse. Ele até existia na caverna, mas agora ficava claro que existia endereçado a alguém. Que existia só porque no fundo, mesmo sem saber, carregava dentro de si a promessa inabalável de que em algum dia, algum outro porquinho abriria a carta que ele carregava em si mesmo e a conseguiria ler e entender. E quem sabe ele mesmo então pudesse ouvir o que estava escrito na carta, pois nem ele sabia o que essa carta dentro dele dizia. Só o que sabia é que ela fora escrita durante anos, cheia de esmero, esperando o dia em que algum porquinho a encontraria entre os espinhos.
Talvez os espinhos tivessem surgido num tempo remoto da vida do porquinho pra proteger essa carta. Pra que ninguém a encontrasse cedo demais, ou antes de saber o que fazer com ela... mas isso era impossível de saber.
O que o porquinho sabia é que não havia mais como esperar ali.
O que ele não sabia é que a dor dos espinhos escondidos seria agora ainda maior que antes, pois seu corpo todo havia se acostumado à ausência de contatos um pouco mais fundos ou com um pouco mais de duração. E quando ele se desse conta disso, sangrando lá dentro sem nem saber, ficaria muito perdido...
Agora eu pergunto a vocês: o que vai ser desse porco-espinho cuja necessidade mais premente e intensa se choca com aquilo que ele é? O que será dessa criaturinha minúscula e quase invisível que já não sabe mais viver sem o abraço de outros porcos-espinhos, se cada abraço lhe espeta tão dolorosamente?
Desde já peço desculpas (talvez devesse tê-las pedido antes), mas eu também não sei. Acabo de encontrar o porquinho morando em algum lugar aqui, no meio do caminho entre a caverna e o desconhecido e a saída pra o impasse em que ele (a vida) se meteu está longe do que alcança minha imaginação. Suponho que cada um de vocês tenha uma resposta possível (ou mais perguntas ainda). O porquinho morre de curiosidade pra conhecê-las, ainda que me confesse que ele também tem dúvidas a respeito de se existe alguma, ou se existe alguma que ele possa escutar sem descobrir por si mesmo. Por enquanto, eu e ele estamos um tanto perplexos, sem conhecer saída pro labirinto em que ele está desde muito tempo.
E é um porquinho tão pequeno, imaginem só...
Um comentário:
ah, que coisa, que encanto, que pranto, que riso, que dor, que amor ao ler este pequenino porquinho...
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