terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Fidel e a Globo

"1961, Havana: María de la Cruz

Pouco depois da invasão, se reune o povo na praça. Fidel anuncia que os prisioneiros serão trocados por remédios para crianças. Depois entrega diplomas a quarenta mil camponeses alfabetizados.
Uma velha insiste em subir à tribuna, e tanto insiste que por fim a sobem. Em vão gesticula no ar, buscando o altíssimo microfone, até que Fidel o ajusta:
- Eu queria conhecê-lo, Fidel. Queria dizer-lhe...
- Olha que vou ficar vermelho.
Mas a velha, mil rugas, quatro ossinhos, lhe desce elogios e gratidões. Ela aprendeu a ler e a escrever aos cento e seis anos de idade. E se apresenta. Chama-se de nome María de la Cruz, por ser nascida no mesmo dia da invenção da Santa Cruz, e de sobrenome Semanat, porque Semanat se chamava a plantação de cana onde ela nasceu escrava, filha de escravos, neta de escravos. Naquele tempo os patrões mandavam ao tronco os negros que queriam letras, explica María de la Cruz, porque os negros eram as máquinas que funcionavam ao toque da sineta e ao ritmo dos açoites, e por isso ela demorou tanto em aprender.
María de la Cruz se apodera da tribuna. Depois de falar, canta. Depois de cantar, dança. Faz mais de um século que se pôs a dançar María de la Cruz. Dançando saiu do ventre da mãe e dançando atravessou a dor e o horror até chegar aqui, que era aonde devia chegar, de modo que agora não há quem a pare".

Eduardo Galeano (Memória do Fogo/ O século do vento)


Esquecer é um dos jeitos de nos tirar a humanidade. De perpetuar um mundo em que "as coisas tomam o lugar das pessoas e as pessoas tomam o lugar das coisas".
Escutando a maneira como o jornal da Globo hoje (ontem) noticiou a saída de Fidel do poder - dizendo que uma de suas últimas fotos mostra o retrato de um ancião "decrépito, decadente, anacrônico, exatamente como as idéias que defende, que já foram testadas pela história, fracassaram e foram acertadamente abandonadas pela absoluta maioria dos países que em algum momento decidiram tentar pô-las em prática" - senti ecos assustadores do tempo em que as 'diretas já' não puderam ser mostradas, em que "dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações" (passado?)...
Enfim, fiquei com um certo nojo daqueles cabelos chapados de apresentadoras de telejornais noturnos e da hipocrisia absurda toda e me deu vontade de postar algo do Galeano...

Sim, Fidel censura a imprensa, matou dissidentes. Sim, a Anistia Internacional tem razão nas denúncias que faz ao regime cubano, como o tem, igualmente, em relação às que faz contra a prisão de Guantánamo, a pena de morte nos EUA (os EUA enfim); os horrores do regime na China, mais nova menina dos olhos do capitalismo; as prisões no Brasil, o absurdo que é nosso país...

Sim, não se pode libertar com mais opressão. Sim, nenhuma ditadura pode ser do proletariado. Se é ditadura não é do povo, a não ser que povo signifique massa homogênea, desumana, burra, como nas grandes marchas indiferenciadas com cara de coisa militar (os fascistas adoravam, os chineses também).
Sim
Mas o capitalismo não é a idéia que venceu. E não morreu a voz que se levanta contra ele, sem suportar o que estamos fazendo com nosso mundo e com nós mesmos.

E Cuba será sim, sempre, um exemplo de resistência. Ainda que como símbolo impreciso, falho, remoto... uma espécie de refúgio dos sonhos que não podem morrer, de uma esperança acalentada com corações, braços, lágrimas, gritos de tantos que não conseguiram se resignar em silêncio.
Que ao menos não esqueçamos.

Um comentário:

Waldo disse...

Pedrão:
Foi com um imenso pesar que recebia via internet a informação da falência de liderança de Fidel... deparei-me logo mais no jornal da Globo wilian wack e arnaldo jabor, descrever com certo prazer e orgulho a decisão de renuncia daquele que a mão de ferro lutou pela equipotencialização de seu povo, através de reportagens rasas e tendenciosas. Isso não é novidade para mim, a pouco foi publicada na revista veja uma reportagem de 2 jornalistas “equivocados” crivados em suas filosofias capitalista e neo-liberal, tentando trazer de volta a tese que comunistas comem criancinhas, distorcendo a imagem de Che um dos poucos mitos resistente de uma das poucas vitórias de um povo.
Não vou aqui querer concordar o discordar do sucesso do socialismo plantado em Cuba, mas se isso se deve fazê-lo, e apontar os erros, nos aprofundemos mais e levemos em conta o bloqueio comercial imposto por EUA a todos os paises, devido a dor de cotovelo por não conseguirem fazer dos cubanos cucaratias, por não conseguir fazer mais daquela ilha uma imensa privada americana. Tem os que apóiam suas divergências vermelhas, na suposta ditadura fidelista, ora vamos, a democracia é salvação de alguém? Não estou defendendo a ditadura (inclusive eu flerto com a utópica filosofia anarco-comunista) não, mas a democracia é a expressão dos sócios econômicos poderosos, que expropriam os pensamentos através da fome miséria e analfabetismo, principalmente o político. A democracia é vontade da maioria, mas a minoria tbm faz parte do pacote, do grupo, que colabora com o todo, mas perdem sua voz. Não vou abrir uma brecha aqui para a ditadura, pois nossa experiência (brasileira, Argentina, Chilena) ao contrario da de Cuba foi bem mais dolorosa, mas algo tem de se fazer qndo a vaca vai para o brejo.
Os números sociais naquela ilha são de uma nação justa, onde eu cedo um pouco para ganhar no todo. O capitalismo exige o desmantelamento da idéia de dividir, de igualdade, pois só existe lucro onde alguém tem prejuízo, e o povo sempre é assolado. “a vida nos ensina que se sobrar um, vai faltar um pr´alguem”.
Quero ter o direito e os deveres de meu semelhante, tenha eu nascido no Capão Redondo ou no Jardins, por um ventre humilde ou em berço de ouro.
Vendo tudo esse bafafá pergunto: c/ toda nossa veemência religiosa, amar os outros como a ti mesmo... Estamos preparados p/ doar por um bem maior?
Mas sigo repetindo... Viva CHE! Viva Fidel! Viva a revolução de 59! E venha a euipotencialização no mundo