sábado, 23 de fevereiro de 2008

Pequena narrativa-exercício

Foto: André Kertesz


"(...) Será que a janela sempre esteve aberta? Será que realmente quero que ela voe para fora? Ou será que estou aqui dentro à espreita, imóvel, prendendo-a com um olhar fixo na escuridão, esperando que ela sucumba ao cansaço?
Porque então poderei me debruçar sobre ela e cuidar dela como fiz no início. Desde o início".

Amós Oz, Não diga noite.



Esfregara muito os olhos naquela manhã, mas nada podia mudar o que via. E ele sequer tinha bebido. Há semanas não fazia nada do tipo. Todo dia, do escritório empoeirado para casa, e de lá novamente ao escritório. Do rosto magro e manchado de Dona Lili, secretária pré-histórica, para os declives desconfortáveis de um colchão improvisado, igualmente pré-histórico.
Sóbrio ou não, não havia nada que ele pudesse fazer para mudar o fato de que naquele dia, ao que parece, o mundo inteiro havia amanhecido diferente. Ao menos o mundo ao seu redor. Todas as coisas pareciam como que distorcidas por uma lente capaz de mudar sua forma real. O fogão, bege, da década passada, ficou ainda mais baixo e atarracado. A estante de madeira escura ganhava contornos de corpo feminino, com suas curvas em S. Os azulejos brancos do banheiro pareciam, enfim, despertar e dançar.
Quanto a ele, suas pernas se curvavam para trás, muito mais altas do que normalmente, o que lhe dava um ar de superioridade inabalável, um olhar triunfante sem esforço ou premeditação o peito aparentemente aberto e amplo. Talvez ele pudesse parecer agora mesmo tudo o que nunca foi. Talvez muito mais livre e auto-suficiente. Talvez até menos ridículo, agora que todos estavam ao menos um pouco ridículos, como numa casa de espelhos curvos.
Como será que estaria ela agora? Como teria amanhecido? Tudo o que ele queria agora da vida era saber como ela reagiria a essa sua nova postura e semblante.
Mas ele não a veria. Nem acidentalmente, nem se a buscasse. Ela estava inexoravelmente longe e não havia como recuperá-la. Nunca mais.

2 comentários:

Athena disse...

Se ela for uma mulher deste mundo ainda restam os telefonemas, as cartas, os emails, as mensagens de celular, as serenatas; se for de outro mundo, que se use psicografia, evocação, novena, promessa, viagem astral - tudo pra que duas pessoas não se percam.
rs
Obrigada pela visita, por tudo que disse; espero honrar teus elogios, Pedro.
Ah, leio e releio teu texto "Associação Livre"... Álvaro de Campos, Psiquê e Prometeu são teus parentes, assim como meus.
:}

Anônimo disse...

Attention!