sábado, 18 de agosto de 2012

Corpo e educação infantil


CORPO E EDUCAÇÃO INFANTIL

Pedro Rodrigo Peñuela Sanches

(Texto originalmente produzido para a Revista Catavento, publicação interna do Centro de Convivência Infantil do Palácio dos Bandeirantes, SP - setembro de 2011)


“Há, no homem, um instinto de vida e de cura espontânea que, uma vez despertado, conduz a uma retomada de equilíbrio, muitas vezes surpreendente. Logo senti que esse trabalho a partir do corpo dizia respeito a todos, e ultrapassava em muito minhas primeiras perspectivas” (Yvonne Berge)

            Atualmente, num mundo tão urbanizado e industrializado, é cada vez mais comum vivermos um cotidiano de distanciamento em relação a nossos corpos. Um grande número de pessoas acorda de manhã com o auxílio do despertador, regula seu corpo de acordo com o tempo do relógio, e passa grande parte do dia em posição sentada (no automóvel, no local de trabalho, etc.), em ambientes artificiais, usando muito pouco o próprio corpo[1].
            Ao mesmo tempo, temos sido bombardeados por uma quantidade muito grande de estímulos visuais e auditivos. Essa estimulação constante faz com que momentos de silêncio, de pausa, de repouso ou relaxamento sejam cada vez mais raros, criando um tipo de “vício de estimulação”[2]: as pessoas passam a necessitar de estímulos cada vez mais fortes para realmente percebê-los.
            Além disso, o corpo é também alvo de uma produção muito intensa de imagens e de ideais de beleza, o que gera em muitas pessoas o sofrimento de sentir-se tendo um corpo inadequado, feio, aquém dos ideais que aparecem nos programas de TV, nas propagandas, revistas, etc.
Essa realidade afeta especialmente o desenvolvimento das crianças e transforma sua forma de brincar e de estar no mundo.
Há algumas décadas, mesmo em uma cidade como São Paulo, as crianças, desde cedo podiam fazer grandes deslocamentos pela cidade[3], descobrindo seus mistérios, explorando suas possibilidades, criando seus próprios brinquedos, e envolvendo profundamente seus corpos nas brincadeiras.
Hoje, porém, as crianças vivem em ambientes cada vez mais restritos, a cidade se tornou perigosa e cheia de carros, e a brincadeira tem se limitado aos jogos eletrônicos e à televisão.
O corpo vai adormecendo; o tato e o olfato ficam quase esquecidos; a visão e a audição desde muito cedo passam a ser quase os únicos sentidos estimulados, as interações com as outras crianças diminuem, como diminui também o acesso aos espaços naturais e às possibilidades de construir os próprios brinquedos... essa riqueza de experiências, que em outros tempos povoavam a vida das crianças, se perde rapidamente.
Tendo isso em vista, o trabalho com o corpo passa a ter cada vez mais importância na educação, e especialmente na educação infantil. Por isso, desde 2009, temos feito semanalmente no CCI oficinas de “Expressão corporal”, que são pensadas como um modo de deixar as crianças redescobrirem suas possibilidades de movimento, brincarem com o corpo, conhecerem o mundo usando todos os sentidos, e enfim, libertarem-se de alguma forma, das restrições e aprisionamentos aos quais seus corpos vêm sendo submetidos.



As aulas são baseadas na linguagem da dança e das artes do corpo, pois entendemos que, como coloca a educadora Yvonne Berge, “a dança (...) educa a receptividade sensorial e suscita um sentido novo, que (...) torna-se ponto de referência para o qual nos voltamos espontaneamente, e que nos permite tornarmo-nos receptivos, como o pescador ao peixe, o caçador à caça, e o navegante ao vento.[4]
            Nesse sentido, buscamos criar um espaço em que a criança possa experimentar diferentes formas de movimentação, sem sentir que precisa mover-se de uma determinada maneira, conforme algum padrão de “certo” ou “errado”. A idéia principal é, pouco a pouco, “criar um clima de distenção que permita à criança o direito de errar, de ser simplesmente ela mesma[5]”.
Portanto, não queremos que as oficinas sejam vividas pelas crianças como mais uma tarefa a ser cumprida, mas que sejam um espaço de respeito ao seu tempo e ritmo próprios.
            Tendo como base esse posicionamento, propomos brincadeiras de movimento, dramatizações de cenas e de histórias, imitação de animais, personagens, objetos, e momentos de fantasia compartilhada, etc. a fim de abrir espaço para que as crianças desenvolvam ou descubram seu equilíbrio postural e uma distribuição mais saudável do peso e do tônus muscular, e também despertem os sentidos do tato, do olfato e do paladar, bem como a ligação entre a visão, a audição e o movimento.



            Também procuramos deixar que as crianças vivenciem momentos de desorientação, pequenas quedas, e que possam girar, saltar, soltar o peso do corpo em uma superfície amortecida, andar sobre terrenos irregulares, etc. para descobrir suas possibilidades de equilíbrio e encontrar soluções com o próprio corpo em diversas situações.
            Esse trabalho tem trazido desafios e descobertas muito especiais. No grupo 2, as crianças estão terminando o processo de conquistar a capacidade de ficar em pé, então o aprendizado com as quedas e as situações de desequilíbrio é bastante valioso. Lembro claramente de quando as crianças desse grupo descobriram que podiam pular de um caixote ao outro confiando em seu próprio equilíbrio e perdendo aos poucos o medo, buscando desafios maiores.
            No grupo 3, as crianças já conquistaram mais possibilidade de movimento e começam a estar mais atentas ao coletivo e às possibilidades de brincarem em grandes grupos. Nessa idade, elas começam a descobrir o prazer de uma brincadeira como o pega-pega, e a conseguir esperar a vez de cada um para ser o pegador ou o fugitivo na brincadeira. Também com as crianças dessa idade, criamos juntos, desde o ano passado, uma brincadeira de fantasia que eles adoram, a “floresta do Beleléu”: todos juntos subimos em um avião e voamos até uma floresta, onde mora o Beleléu. Lá subimos montanhas, nadamos em rios e cachoeiras, atravessamos tempestades, furacões, e nos transformamos em animais (fantásticos ou não), enquanto procuramos pelo Beleléu.
Algumas crianças criam soluções muito criativas para representar certos personagens ou objetos apenas com os movimentos, como quando uma das crianças, por exemplo, criou sozinha um gesto muito engraçado com as mãos para representar um helicóptero, quando todos estávamos paralizados, sem saber como representá-lo.



            Com o Grupo 4, já podemos nos aventurar em criações de coreografias e improvisações. As crianças adoram dançar, especialmente com o apoio de objetos, bonecos, marcas no chão, etc. Em uma brincadeira como a “Dança das Caveiras” (cantada por Bia Bedran), pedimos que cada um criasse uma ação nova, diferente das ações já definidas pela música, e elas se apropriaram dessa idéia de forma muito rica: algumas trouxeram o universo dos videogames, ou dos desenhos animados (propondo que as caveiras deveriam pegar armas, se transformar em monstros, etc.), outras criaram ações mais aventureiras, como escalar montanhas, ou ações mais ligadas ao mundo da brincadeira, como jogar futebol, ou da fantasia, como se transformar em um animal.
Com as crianças dessa faixa etária, já conseguimos criar danças mais brincadas e mais improvisadas, inclusive para as apresentações de final de ano, o que nos ajuda a desmistificar a idéia comum de que só seria apresentável uma dança toda fechada e definida, imposta às crianças em ensaios desinteressantes e monótonos. Com elas, os ensaios e a preparação das apresentações também podem ser momentos de brincadeira, e da aparente bagunça, vão surgindo os movimentos e as formas, e a dança flui...
             
           



[1] Uma discussão mais completa sobre isso pode ser encontrada em LE BRETON, D. Adeus ao corpo. São Paulo: Papirus, 2003.
[2] Ver SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. Em: VELHO, O. G. (org.), O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
[3] Ver, por exemplo, LIMA, M. S. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989.
[4] BERGE, Y. Viver o seu corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 25-26.
[5] Idem, p. 30.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Chuva






"(...) São pessoas comuns, que em várias partes do mundo (...) provocam transformações de modo ordinário, discreto e imperceptível, tornam-se dignos todos os dias, mas com tamanha naturalidade que parecem sempre ter sido dignos. O impacto destas transformações é forte, embora elas expressem a mesma naturalidade e o mesmo frescor exalados por uma onda no mar seguida de outra.
Haveria muitas coisas a aprender com antigos guerreiros e, também, com os combatentes do cotidiano ordinário de nossos dias. Difícil encontrá-los, dizem uns, não vivem por aqui, dizem outros. Talvez vivam por aqui sim, e bem próximos; pois, se um bom estrategista prima pela discrição, os melhores são aqueles que não deixam traços."


(Denise B. de Sant'Anna, do livro "Corpos de passagem". Estação Liberdade, 2001)

Fotos tiradas com celular, na chuva, em SP.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O corpo




 "(...) quando você encontra um corpo, quando você descobre um corpo, o corpo está ali, de uma só vez, descolado da pessoa, da fala, do contexto, do sentido, da história, da paisagem. Um corpo é sempre estranho e estrangeiro, em sua opacidade inapreensível, inesgotável, irredutível. O corpo pode significar algo, enquanto signos, gestos, mímica, com todas suas mobilidades, mas o real que aí se dá como corpo é aquele que rompe com a significação. O corpo é esta ruptura. O corpo é este estranho começo e recomeço que pode colocar tudo em questão."

Kuniichi Uno, "Corpo-gênese: em torno de Tanaka Min, de Hijikata e de Artaud", publicado nos "Cadernos de Subjetividade", 2010 - um dos textos que mais tenho lido e relido...) 

Foto: Sankai Juku - Utsushi

Caminhos

Feliz por revisitar esse meu antigo blog, decidi tentar voltar a escrever aqui... agora com foco no que tenho pensado, pesquisado, lido, produzido em relação ao corpo, dança, trabalho corporal, e por aí afora... mas sempre com outros assuntos da vida que continuam cabendo nessa vontade de dizer coisas pro mundo...

Porque todos, todinhos, temos algo a dizer aos demais, alguma coisa que merece ser pelos demais celebrada ou perdoada. (Eduardo Galeano, citado neste mesmo blog em novembro de 2007)

Sutileza

"Há qualquer coisa de rude no puritanismo de modo geral. E há algo de puritano na falta de sutileza, especialmente quando esta é entendida como complexidade de gestos, sentimentos e ritmos do corpo. Um gesto sem sutileza tem dificuldade de sugerir. Se chega a fazê-lo tem pudores em se ofertar como enigma. (...)
Pois a sutileza inclui zonas de sombra, e estas não significam caos nem, necessariamente, silêncio. O gesto sutil é em geral potente justamente porque sua força não se explicita de uma só vez, como se se tratasse do último ou do melhor gesto. A sutileza não se concilia bem com tais romantismos fatalistas, nem com a necessidade de aproximar o começo do fim. Ela também não se adapta ao fascínio pelas palavras (ou pelos gestos), que se impõem como definitivos. De fato, a sutileza não é um fast food. O que não impede de existir quando se come um hamburguer ou quando se trabalha na cozinha de um fast food ou na limpeza de suas latrinas. É apenas na aparência que a sutileza é frágil ou cliente exclusiva dos restaurantes de luxo. Gestos sutis são delicados e fortes, por isso eles se parecem com formigas avermelhadas que andam por toda a parte, como baratas ancestrais, uma sempre seguida da outra. Seres que parecem inúteis nesse mundo de tantas usuras.
(...) É que a sutileza, assim como a delicadeza, é fértil; elas sempre gestam outras falas e atos. São portanto coletivas e indicam passagens, criam envelopes, epidermes capazes de amaciar certos contatos e iniciar o corpo para a vida junto a muitos outros. A delicadeza constituinte do gesto sutil é iniciadora."

(Denise Bernuzzi de Sant'Anna, publicado em "Corpos de passagem", Ed. Estação Liberdade, 2001)