sábado, 11 de outubro de 2014

Da matéria dos sonhos (sobre "Rêverie", de Morena Nascimento e Carolina Bianchi)

                                                                             Foto: Biel Machado


"Rêverie" me emocionou de uma maneira ainda difícil de explicar e ficou povoando meus dias depois de tê-lo visto, com reminiscências e canções e uma alegria estranha e igualmente difícil de explicar que parecia ter a ver com uma sensação difusa de um furo no tempo, uma travessia ou simultaneidade entre coisas de tempos diferentes. 
Difícil dizer e a dificuldade de dizer é bem um atravessamento para esse texto... (a escrita é também uma dor).

Palavra e coisa

This is not my hand, um inglês com sotaque. Porque há uma tensão velha conhecida entre palavra e coisa, palavra e experiência que faz toda língua ser estrangeira, toda palavra um hiato e uma negociação frágil com o silêncio, com o que ela não atinge e mata e empurra pra uma outra camada – “fiapos de afetos”, na expressão de José Gil, veiculados num certo inconsciente vivo e intenso que vai atravessando o gesto, a presença...

Presença

Escutei Jérôme Bel dizendo em um trabalho cênico seu que o específico do teatro e das artes da cena é a presença real de alguém. Essa seria a diferença e a potência própria do teatro em relação ao cinema ou à televisão, por exemplo. 
São evidentemente conhecidas as implicações dessa discussão, as armadilhas desse “real” e os dispositivos de distanciamento e metalinguagem desde Brecht ou tantos outros que nos alertam para a artificialidade, a ficcionalidade da cena (como igualmente da “realidade” e seus protocolos previsíveis), os limites da catarse ou da intenção de mímese. Morena parece saber bem de tudo isso. E mais. Os cortes na música cantada com tanto transbordamento e que vai convocando a emoção quase para o típico momento apoteótico de chorar e circular coletivamente uma dor meio ficcional, meio desejada, golpeiam a possibilidade desse tipo de experiência conhecida, mas, penso que não a serviço de alguma ironia ou intenção de desconstrução de alguma coisa. Pois, os cortes e a volta da voz e do gesto a cada vez que a luz retorna, vão escavando a ação e aproximando-a de alguma coisa mais difícil de nomear e capturar numa emoção já codificada, mas talvez por isso mesmo mais próxima. Como nos trabalhos de Pina Bausch, a repetição torna de todos aquilo que era uma memória singular do bailarino. O trágico e o patético se imbricando e sendo alguma outra coisa, muito de todos, e justamente por isso, muito específica de cada um.

Voz

O canto de Morena atravessado pelo de Joan Baez, vencido por ele, guardado por ele, acolhido como reverberação, um silêncio dentro do canto que se impõe, vivo como memória subterrânea. Como coisa que morreu e fica um pouco aqui, de outro jeito. Hay muertos que no hacen ruido, y es más grande su penar. Depois, a música africana e uma dança de saudade, um corpo leve e doce, a nostalgia de algum espaço de vida junto em que os sentidos de proximidade, os cheiros e toques com o mundo e os outros talvez fossem vividos com uma naturalidade que conhecemos e sentimos ter perdido. 

Ausências

“Desejo que você obtenha tudo o que ninguém pode te dar”, disse uma empregada a Clarice Lispector. As sombras dançam uma dança que parece estar em outro tempo, uma presença subterrânea, como a da memória e do ausente – o que ninguém pode te dar. Como nos sonhos de solidões das mulheres, compostos por Grete Stern, ela própria esquecida mais tarde em um apartamento em Buenos Aires fazendo exercícios para as articulações desgastadas... uma imagem ordinariamente trágica e ficcional, ordinariamente comum e nossa, única, seu olhar de senhora alemã-argentina cheia de pertencimentos perdidos e saudades ácidas europeias e uma ternura (falo da Grete Stern que vi num video, gravado pouco antes de sua morte, bastante tempo depois das fotocolagens)...

Muito perto

Morena e Carolina subvertem a visão como sentido de distanciamento e a palavra como morte da coisa. Se a palavra tenta fixar precariamente a fluidez do real, esse sobra nos buracos da linguagem e, em certas experiências, como em Rêverie, escorre por ela e com ela e nos deixa empapados como só com a chuva acontece. Ficamos muito perto. A palavra e o corpo são convites, menos como enunciados, mais, talvez, como carinhos ou golpes ou um dar as mãos. Além de um corpo que contagia por sua dança e nos faz dançar ou mobilizar corpos virtuais, um corpo que nos dança, ou dança que nos corporaliza, água, emotionalen Sturm. “Eu adoro essa música”...


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