sábado, 7 de março de 2015

As mesmas ilusões

O que fazem os mendigos do centro com a dor da solidão? Será que dói mais que o frio, os cobertores molhados, o mau cheiro e o medo? A pele pedindo outra pele, outro peso, outro som de respiração. Quando têm pesadelos e acordam no meio da noite sem ninguém. Quando lembram de alguma coisa de quando ainda eram novos demais pra ser vivida.
No caminho de volta, um homem de pés descalços, na cidade, noite, chuva, me pede um cigarro. Lembrei da única vez em que senti vontade de fumar. Meu pulmão pedindo alguma coisa mais densa que o ar... Ele anda mais rápido que eu e no cruzamento à frente, esquece que já tinha me encontrado e me pede 60 centavos que ele não vai mentir que não são pra nada além da cachaça.
Deixar a música alta levar meu corpo à exaustão e esquecer do meu próprio pulso hesitante é uma cachaça pra mim. Mas quando não tem mais música e só o vidro molhado da chuva e uma casa imensa, eles ao menos têm a rua, o barulho e o consolo de uma dor que tem sentido e motivo, uma dor real e não frescura de adolescente tardio perdido.
Os carros ainda atravessam naquele cruzamento proibido, com ódio dos corpos ainda sem próteses tecnológicas sofisticadas pra se locomover mais rápido até Amigos, não tem pra onde fugir e aqui fora ao menos existem os rostos das pessoas na rua e pequenas promessas fugazes.
“Desejo que obtenhas o que ninguém pode te dar”. A chuva dourada uma música um cigarro uma cachaça uma rua augusta um encantamento um beijo um amor uma saudade um dia um adeus wong kar wai o que ninguém pode te dar sua ausência que fica e danço com ela meus passos desengonçados de sempre que não enganam ninguém porque minha cara denuncia quando estou mentindo e afinal meto os pés pelas mãos sempre você o tempo os ciclos e as fases da lua do desejo do anseio da dor do buraco no peito de osso esterno afundado que daria uma foto preto e branco num livro de problemas ortopédicos e às vezes eu não sinto o chão mesmo porque não é fácil estar aqui sem você com a vida e comigo tropecei no chão molhado mas consegui me segurar e quem pode dizer que tem um amor maior e quem pode dizer que entende.
Sonhei que acordava com a campainha tocando e fui abrir e encontro na porta pessoas indignadas em me ver numa casa que não era minha, então eu digo que deve haver algum engano porque é minha casa e então olho o número e não é o número da minha casa, olho em volta e percebo móveis quadriculados que eu não tenho e uma mesa de centro. Peço desculpas, é que eu devia estar muito cansado ontem e desci no andar errado do prédio, entrei e dormi e a chave funcionou. Estranho. Eles não acreditam nas minhas explicações e eu digo que posso mostrar minha mochila sem nada da casa e que vou embora logo mas eles parecem querer algo mais de mim.

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