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E então o viajante vindo de muito longe. Cansado, ainda tonto do fuso horário e das horas de sono irrecuperáveis, e cheio de esperança e expectativa, passaria por essa portinha secreta, cuja localização ele descobriu depois de incontáveis sacrifícios e dificuldades, e encontraria ali um amplo salão com o cheiro do pó de séculos de história das perdas e desencontros.
E ali estaria então aquela tampa da caneta, a blusa que ele adorava e esqueceu, tudo que caiu debaixo da cama, aquele documento imprescindível que não estava na pasta justamente depois de horas de fila numa repartição pública, o dinheiro que caiu no chão Deus sabe onde, o cheiro da árvore da minha rua, o cheiro da chuva nas férias, o gosto da manga e do coco e do sorvete, aquele roxo na perna depois de escorregar no sabão lavando o quintal, ser o último no esconde-esconde, as piadas sujas e histórias de terror depois das onze, a luz da rua, as estrelas naquele dia, aquela música que não toca mais e não há mp3 que ressuscite, doçura de um olhar, os amores perdidos, os que ficaram num instante, os prometidos, os que eram pra sempre, os perdidos no caminho, caídos Deus sabe onde, os que escorregaram, caíram no mar, os que morreram, os que foram mortos, os que não puderam, os que bem que podiam...
Tudo ali, catalogado por uma bibliotecária de óculos fundo-de-garrafa e moleton clarinho, cansada de a memória gostar tanto de misturar e confundir, justo num lugar cujo acervo era imenso, todo sob sua responsabilidade, e eu todo ano peço aumento, só não saio daqui por dó... olha a cara daquele ali, o cachorro vai morrer asfixiado, já faz meia hora que ele não desgruda dele... mas diz logo o que você quer porque tem uma pilha de objetos naquele carrinho pra eu guardar. E vocês sempre querem aquele ursinho, aquela panqueca, aquela única e há aqui infinitas com todos os cheiros e sabores e tostadas em todos os graus imagináveis... com licença que tenho que consultar uma coisinha aqui no fichário, você aguarde um instante...
E nosso viajante, embasbacado de ter conseguido, ainda sem fôlego ou voz, por um instante hesitaria em escolher dentre suas tantas coisas perdidas e jamais reencontráveis, agora todas ali, escondidas em algum lugar entre as inúmeras estantes e prateleiras e gavetas, tudo em ordem alfabética e precisamente datado (mas qual seria o dia em que nós...?). Mas ele havia atravessado mar e terra por milhares de quilômetros por uma razão única e não poderia se distrair dela bem agora. Não dessa vez. Já a tinha perdido antes e não podia perder de novo. O nome dela era simples e comum, mas relatadas as circunstâncias, a bibliotecária não demoraria em indicar-lhe a estante em que a encontraria, bem ali, esperando por ele, por seu pedido de desculpas, por seu abraço e beijo aquecidos pela espera e pela busca. Sim, não seria tão difícil...
E no fim da tarde, perguntaria a bibliotecária com o rosto mais arredondado da alegriazinha de ter reunido mais um casal feliz, e então, meu bem, como foi o encontro, e como estava ela? linda? Ah, sim? Como naquela vez... que bom... mas, e então? E então que ele se dera conta de que algo mais se perdera sem que ele soubesse precisar em contornos claros o que era. Talvez o que ele sentia outrora. Talvez, meu bem, quem você era. Talvez eu mesmo tenha me perdido em algum lugar e...
Meu bem, estamos no fim do expediente de hoje e parece que o que você perdeu não é tão fácil de encontrar. Você já olhou nos carrinhos? Olha, eu já mandei botarem câmeras de segurança pros que vêm meio confusos e pegam coisas demais... nunca se sabe. Mas volte amanhã, imagino que você tenha tempo... ou, escolha algo mais fácil, você deve ter alguma lapiseira que adorava e não encontra mais.