quarta-feira, 12 de março de 2008

Achados e perdidos

Hoje fiquei desejando que houvesse em algum lugar no mundo um “achados-e-perdidos”. Mas que fosse único e em um único lugar. Quem sabe num canto de um beco, alguma coisa parecida com uma porta roxa enigmática num daqueles becos de Nova York que aparecem nos filmes (não sei por que, mas foi assim que imaginei de primeira).
E então o viajante vindo de muito longe. Cansado, ainda tonto do fuso horário e das horas de sono irrecuperáveis, e cheio de esperança e expectativa, passaria por essa portinha secreta, cuja localização ele descobriu depois de incontáveis sacrifícios e dificuldades, e encontraria ali um amplo salão com o cheiro do pó de séculos de história das perdas e desencontros.
E ali estaria então aquela tampa da caneta, a blusa que ele adorava e esqueceu, tudo que caiu debaixo da cama, aquele documento imprescindível que não estava na pasta justamente depois de horas de fila numa repartição pública, o dinheiro que caiu no chão Deus sabe onde, o cheiro da árvore da minha rua, o cheiro da chuva nas férias, o gosto da manga e do coco e do sorvete, aquele roxo na perna depois de escorregar no sabão lavando o quintal, ser o último no esconde-esconde, as piadas sujas e histórias de terror depois das onze, a luz da rua, as estrelas naquele dia, aquela música que não toca mais e não há mp3 que ressuscite, doçura de um olhar, os amores perdidos, os que ficaram num instante, os prometidos, os que eram pra sempre, os perdidos no caminho, caídos Deus sabe onde, os que escorregaram, caíram no mar, os que morreram, os que foram mortos, os que não puderam, os que bem que podiam...
Tudo ali, catalogado por uma bibliotecária de óculos fundo-de-garrafa e moleton clarinho, cansada de a memória gostar tanto de misturar e confundir, justo num lugar cujo acervo era imenso, todo sob sua responsabilidade, e eu todo ano peço aumento, só não saio daqui por dó... olha a cara daquele ali, o cachorro vai morrer asfixiado, já faz meia hora que ele não desgruda dele... mas diz logo o que você quer porque tem uma pilha de objetos naquele carrinho pra eu guardar. E vocês sempre querem aquele ursinho, aquela panqueca, aquela única e há aqui infinitas com todos os cheiros e sabores e tostadas em todos os graus imagináveis... com licença que tenho que consultar uma coisinha aqui no fichário, você aguarde um instante...
E nosso viajante, embasbacado de ter conseguido, ainda sem fôlego ou voz, por um instante hesitaria em escolher dentre suas tantas coisas perdidas e jamais reencontráveis, agora todas ali, escondidas em algum lugar entre as inúmeras estantes e prateleiras e gavetas, tudo em ordem alfabética e precisamente datado (mas qual seria o dia em que nós...?). Mas ele havia atravessado mar e terra por milhares de quilômetros por uma razão única e não poderia se distrair dela bem agora. Não dessa vez. Já a tinha perdido antes e não podia perder de novo. O nome dela era simples e comum, mas relatadas as circunstâncias, a bibliotecária não demoraria em indicar-lhe a estante em que a encontraria, bem ali, esperando por ele, por seu pedido de desculpas, por seu abraço e beijo aquecidos pela espera e pela busca. Sim, não seria tão difícil...
E no fim da tarde, perguntaria a bibliotecária com o rosto mais arredondado da alegriazinha de ter reunido mais um casal feliz, e então, meu bem, como foi o encontro, e como estava ela? linda? Ah, sim? Como naquela vez... que bom... mas, e então? E então que ele se dera conta de que algo mais se perdera sem que ele soubesse precisar em contornos claros o que era. Talvez o que ele sentia outrora. Talvez, meu bem, quem você era. Talvez eu mesmo tenha me perdido em algum lugar e...
Meu bem, estamos no fim do expediente de hoje e parece que o que você perdeu não é tão fácil de encontrar. Você já olhou nos carrinhos? Olha, eu já mandei botarem câmeras de segurança pros que vêm meio confusos e pegam coisas demais... nunca se sabe. Mas volte amanhã, imagino que você tenha tempo... ou, escolha algo mais fácil, você deve ter alguma lapiseira que adorava e não encontra mais.

11 comentários:

Carolina disse...

bem que podia... tudo em ordem alfabética e datado!ai, ai... bem que podia... rss.
beijo lindo!

Otavio Ranzani disse...

Opa Pedro,
boas idéias no blog! Curti a idéia do achados e perdidos! Ainda ontem pensava no assunto, após achar algo perdido e também escutar a história de uma idosa que demorou um ano para achar algo escondido! Belezera, Otavio ( http://canelacafe.zip.net )

Athena disse...

Putz, Pedro.
Sem palavras pra dizer o quanto adorei. Mesmo mesmo, achei genial.
E eu não tenho nenhuma lapiseira que queira muito... Acho que o protagonista do texto tb não tem, né? =)
A vida vai e leva tudo, ao que parece. Mas ainda tenho esperanças de que algo reste e que esse algo valha a pena toda a espera.
Mandei email
=*

Conrado Vivacqua disse...

Pedro....Viu, eu li algo seu mesmo você não me escrevendo nenhum e-mail. Está em dívida comigo.

Adorei seu texto, como os outros aí de cima. Mas não quero este achados-e-perdidos, pois ele substituiria a memória. História, museu, gaveta do armários...todas essas coisas são os grandes achados-e-perdidos da humanidade, e não posseum porta cor de rosa. Adorei seu texto, juro, e não estou diminuindo ele. Você materializou, e ao mesmo tempo reduziu, todos os nossos grandes armazéns de memória em umúnico espaço imaginário. E mesmo assim eu tive vontade de abrir esta por cor de rosa...

"a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida"

Encontros com pessoas, vidas e memórias, objetos e coisas, por que não?

Até.

Athena disse...

Leio releio releio releio. E não canso.
Tenho muitas coisas perdidas, mas começo a achar que o melhor é não achá-las... Porque elas já não seriam as mesmas, eu já não sou a mesma, crueldade do tempo, desencontros... Tudo vai.
Tomara vc encontre um interlocutor daqueles, é bem possível, acredite. Eu continuo acreditando, mesmo tendo perdido o meu em algum beco de alguma uma rua chamada ilusão... rs
Beijo.

Carolina disse...

Hey, onde anda a continuação da ("minha") história? Tire da cabeça e ponha já nesse papel virtual!
Beijo grande.

Patrícia C. disse...

Lindo....
Vez em sempre, apareço por aqui para ler essa bela escrita.

Gostei das referências aos autores, em posts anteriores - muito a discutir!

Beijão!

Patrícia

Tânia Souza disse...

Sempre que venho aqui no seu blog, uma emoção diferente, uma inquietação, e como sempre, a eterna procura econtra na literatura um caminho, abraços, já está entre meus favoritos.

Anônimo disse...

Pedro, querido
Por onde vc anda?
Saudade dos nossos olás e até logo!
kkkkkk
bjo carinhoso
Santinha

Anônimo disse...

Hello. This post is likeable, and your blog is very interesting, congratulations :-). I will add in my blogroll =). If possible gives a last there on my blog, it is about the Projetores, I hope you enjoy. The address is http://projetor-brasil.blogspot.com. A hug.

Athena disse...

hey, Pedro! tá tudo bem? saudades dos escritos. beijo.