quarta-feira, 12 de março de 2008

Achados e perdidos

Hoje fiquei desejando que houvesse em algum lugar no mundo um “achados-e-perdidos”. Mas que fosse único e em um único lugar. Quem sabe num canto de um beco, alguma coisa parecida com uma porta roxa enigmática num daqueles becos de Nova York que aparecem nos filmes (não sei por que, mas foi assim que imaginei de primeira).
E então o viajante vindo de muito longe. Cansado, ainda tonto do fuso horário e das horas de sono irrecuperáveis, e cheio de esperança e expectativa, passaria por essa portinha secreta, cuja localização ele descobriu depois de incontáveis sacrifícios e dificuldades, e encontraria ali um amplo salão com o cheiro do pó de séculos de história das perdas e desencontros.
E ali estaria então aquela tampa da caneta, a blusa que ele adorava e esqueceu, tudo que caiu debaixo da cama, aquele documento imprescindível que não estava na pasta justamente depois de horas de fila numa repartição pública, o dinheiro que caiu no chão Deus sabe onde, o cheiro da árvore da minha rua, o cheiro da chuva nas férias, o gosto da manga e do coco e do sorvete, aquele roxo na perna depois de escorregar no sabão lavando o quintal, ser o último no esconde-esconde, as piadas sujas e histórias de terror depois das onze, a luz da rua, as estrelas naquele dia, aquela música que não toca mais e não há mp3 que ressuscite, doçura de um olhar, os amores perdidos, os que ficaram num instante, os prometidos, os que eram pra sempre, os perdidos no caminho, caídos Deus sabe onde, os que escorregaram, caíram no mar, os que morreram, os que foram mortos, os que não puderam, os que bem que podiam...
Tudo ali, catalogado por uma bibliotecária de óculos fundo-de-garrafa e moleton clarinho, cansada de a memória gostar tanto de misturar e confundir, justo num lugar cujo acervo era imenso, todo sob sua responsabilidade, e eu todo ano peço aumento, só não saio daqui por dó... olha a cara daquele ali, o cachorro vai morrer asfixiado, já faz meia hora que ele não desgruda dele... mas diz logo o que você quer porque tem uma pilha de objetos naquele carrinho pra eu guardar. E vocês sempre querem aquele ursinho, aquela panqueca, aquela única e há aqui infinitas com todos os cheiros e sabores e tostadas em todos os graus imagináveis... com licença que tenho que consultar uma coisinha aqui no fichário, você aguarde um instante...
E nosso viajante, embasbacado de ter conseguido, ainda sem fôlego ou voz, por um instante hesitaria em escolher dentre suas tantas coisas perdidas e jamais reencontráveis, agora todas ali, escondidas em algum lugar entre as inúmeras estantes e prateleiras e gavetas, tudo em ordem alfabética e precisamente datado (mas qual seria o dia em que nós...?). Mas ele havia atravessado mar e terra por milhares de quilômetros por uma razão única e não poderia se distrair dela bem agora. Não dessa vez. Já a tinha perdido antes e não podia perder de novo. O nome dela era simples e comum, mas relatadas as circunstâncias, a bibliotecária não demoraria em indicar-lhe a estante em que a encontraria, bem ali, esperando por ele, por seu pedido de desculpas, por seu abraço e beijo aquecidos pela espera e pela busca. Sim, não seria tão difícil...
E no fim da tarde, perguntaria a bibliotecária com o rosto mais arredondado da alegriazinha de ter reunido mais um casal feliz, e então, meu bem, como foi o encontro, e como estava ela? linda? Ah, sim? Como naquela vez... que bom... mas, e então? E então que ele se dera conta de que algo mais se perdera sem que ele soubesse precisar em contornos claros o que era. Talvez o que ele sentia outrora. Talvez, meu bem, quem você era. Talvez eu mesmo tenha me perdido em algum lugar e...
Meu bem, estamos no fim do expediente de hoje e parece que o que você perdeu não é tão fácil de encontrar. Você já olhou nos carrinhos? Olha, eu já mandei botarem câmeras de segurança pros que vêm meio confusos e pegam coisas demais... nunca se sabe. Mas volte amanhã, imagino que você tenha tempo... ou, escolha algo mais fácil, você deve ter alguma lapiseira que adorava e não encontra mais.

sábado, 8 de março de 2008

Um lugar onde chorar

"(...) Estava frio na rua. O vento era como gelo. As pessoas passavam correndo, muito rápido; os homens caminhavam feito tesouras; as mulheres andavam feito gatos. E ninguém sabia - ninguém ligava. Mesmo que ela perdesse o controle, se, finalmente, depois de todos esses anos, fosse chorar, por certo a internariam. Mas, diante da idéia de chorar, era como se o pequeno Lennie pulasse nos braços da vó. Ah, é isso que ela quer fazer, meu pombinho, a vó quer chorar. Se ela pudesse só chorar agora, e chorar um tempão, por tudo (...). Mas um choro apropriado por todas essas coisas levaria um tempão. De todo modo, o tempo para isso tinha chegado. Ela devia fazê-lo. Não poderia mais adiar isso; não poderia esperar mais... Aonde poderia ir?(...) Não haveria um lugar onde ela pudesse se esconder e ficar consigo mesma o tempo que quisesse, sem perturbar ninguém, e sem que ninguém a importunasse? Não haveria algum lugar no mundo onde ela pudesse chorar abertamente - por fim?Mãe Parker parou, olhando para um lado e para o outro. O vento gelado inflou seu avental como um balão. E agora começava a chover. Não havia lugar algum."

Katherine Mansfield, do Conto "A vida de Mãe Parker"

terça-feira, 4 de março de 2008

Até estarmos quites

“(...) seu corpo era rijo e compacto, mas esta noite seu desejo parecia quase separado dele, como se na realidade quisesse mesmo me envolver e abraçar inteira, como se ansiasse me absorver ou me fazer parte de si, que eu fizesse parte dele, dependesse dele, e tocava minha pele com tanta intensidade que mal se preocupava com o que o seu corpo iria receber, podia não receber nada, contanto que eu ficasse na minha posição fetal e enrolada no seu corpo como um filhote de pássaro debaixo das asas da mãe. Eu queria e ao mesmo tempo não queria me render a ele, obedecer a ele, dar-lhe o poder de dar, de me dar, e no entanto escorreguei para fora do seu abraço, da forma deliciosa que me mimava, e fiz com que se deitasse de costas e não interferisse com o que eu lhe fazia, até estarmos quites, e daí por diante, até o final, estávamos um para o outro, como um dueto a quatro mãos, por um momento possivelmente ficamos parecendo dois pais dedicados debruçados sobre um bebê, intensamente, cabeças se tocando, brincando com uma criança que devolve amor com amor. (...)”

Amós Oz, Não diga noite.


... porque algo então inadvertidamente caíra e já não sabíamos recuperar os restos espalhados pelo chão e até meu colar se desatou e nos surpreendemos em nossa nudez de avessos inintegráveis à regular coerência que tínhamos forjado ao longo dos anos de hábitos e muros.
Sim, colamos bem os cacos, mas ficou uma marca invisível nos perguntando quando foi mesmo que decidiu-se que seria melhor que seguíssemos nos tocando protegidos pela invisível pele falsa de nossos sofisticados figurinos sem os quais supúnhamos não ter rosto...
Quando foi que alguma coisa mais além pareceu se anunciar?
Vá embora, ainda é tempo.
A vida é ficção reescrita a posteriori. Composição ligeiramente singular sobre um mesmíssimo material.
Mas,
Quando foi que acreditar parecia tanto ser agora?

domingo, 2 de março de 2008

Mistérios da meia noite

Vincent Van Gogh (Noite Estrelada, 1888)



O Sono das Águas

"Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono... "
Guimarães Rosa

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Pequena narrativa-exercício

Foto: André Kertesz


"(...) Será que a janela sempre esteve aberta? Será que realmente quero que ela voe para fora? Ou será que estou aqui dentro à espreita, imóvel, prendendo-a com um olhar fixo na escuridão, esperando que ela sucumba ao cansaço?
Porque então poderei me debruçar sobre ela e cuidar dela como fiz no início. Desde o início".

Amós Oz, Não diga noite.



Esfregara muito os olhos naquela manhã, mas nada podia mudar o que via. E ele sequer tinha bebido. Há semanas não fazia nada do tipo. Todo dia, do escritório empoeirado para casa, e de lá novamente ao escritório. Do rosto magro e manchado de Dona Lili, secretária pré-histórica, para os declives desconfortáveis de um colchão improvisado, igualmente pré-histórico.
Sóbrio ou não, não havia nada que ele pudesse fazer para mudar o fato de que naquele dia, ao que parece, o mundo inteiro havia amanhecido diferente. Ao menos o mundo ao seu redor. Todas as coisas pareciam como que distorcidas por uma lente capaz de mudar sua forma real. O fogão, bege, da década passada, ficou ainda mais baixo e atarracado. A estante de madeira escura ganhava contornos de corpo feminino, com suas curvas em S. Os azulejos brancos do banheiro pareciam, enfim, despertar e dançar.
Quanto a ele, suas pernas se curvavam para trás, muito mais altas do que normalmente, o que lhe dava um ar de superioridade inabalável, um olhar triunfante sem esforço ou premeditação o peito aparentemente aberto e amplo. Talvez ele pudesse parecer agora mesmo tudo o que nunca foi. Talvez muito mais livre e auto-suficiente. Talvez até menos ridículo, agora que todos estavam ao menos um pouco ridículos, como numa casa de espelhos curvos.
Como será que estaria ela agora? Como teria amanhecido? Tudo o que ele queria agora da vida era saber como ela reagiria a essa sua nova postura e semblante.
Mas ele não a veria. Nem acidentalmente, nem se a buscasse. Ela estava inexoravelmente longe e não havia como recuperá-la. Nunca mais.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Fidel e a Globo

"1961, Havana: María de la Cruz

Pouco depois da invasão, se reune o povo na praça. Fidel anuncia que os prisioneiros serão trocados por remédios para crianças. Depois entrega diplomas a quarenta mil camponeses alfabetizados.
Uma velha insiste em subir à tribuna, e tanto insiste que por fim a sobem. Em vão gesticula no ar, buscando o altíssimo microfone, até que Fidel o ajusta:
- Eu queria conhecê-lo, Fidel. Queria dizer-lhe...
- Olha que vou ficar vermelho.
Mas a velha, mil rugas, quatro ossinhos, lhe desce elogios e gratidões. Ela aprendeu a ler e a escrever aos cento e seis anos de idade. E se apresenta. Chama-se de nome María de la Cruz, por ser nascida no mesmo dia da invenção da Santa Cruz, e de sobrenome Semanat, porque Semanat se chamava a plantação de cana onde ela nasceu escrava, filha de escravos, neta de escravos. Naquele tempo os patrões mandavam ao tronco os negros que queriam letras, explica María de la Cruz, porque os negros eram as máquinas que funcionavam ao toque da sineta e ao ritmo dos açoites, e por isso ela demorou tanto em aprender.
María de la Cruz se apodera da tribuna. Depois de falar, canta. Depois de cantar, dança. Faz mais de um século que se pôs a dançar María de la Cruz. Dançando saiu do ventre da mãe e dançando atravessou a dor e o horror até chegar aqui, que era aonde devia chegar, de modo que agora não há quem a pare".

Eduardo Galeano (Memória do Fogo/ O século do vento)


Esquecer é um dos jeitos de nos tirar a humanidade. De perpetuar um mundo em que "as coisas tomam o lugar das pessoas e as pessoas tomam o lugar das coisas".
Escutando a maneira como o jornal da Globo hoje (ontem) noticiou a saída de Fidel do poder - dizendo que uma de suas últimas fotos mostra o retrato de um ancião "decrépito, decadente, anacrônico, exatamente como as idéias que defende, que já foram testadas pela história, fracassaram e foram acertadamente abandonadas pela absoluta maioria dos países que em algum momento decidiram tentar pô-las em prática" - senti ecos assustadores do tempo em que as 'diretas já' não puderam ser mostradas, em que "dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações" (passado?)...
Enfim, fiquei com um certo nojo daqueles cabelos chapados de apresentadoras de telejornais noturnos e da hipocrisia absurda toda e me deu vontade de postar algo do Galeano...

Sim, Fidel censura a imprensa, matou dissidentes. Sim, a Anistia Internacional tem razão nas denúncias que faz ao regime cubano, como o tem, igualmente, em relação às que faz contra a prisão de Guantánamo, a pena de morte nos EUA (os EUA enfim); os horrores do regime na China, mais nova menina dos olhos do capitalismo; as prisões no Brasil, o absurdo que é nosso país...

Sim, não se pode libertar com mais opressão. Sim, nenhuma ditadura pode ser do proletariado. Se é ditadura não é do povo, a não ser que povo signifique massa homogênea, desumana, burra, como nas grandes marchas indiferenciadas com cara de coisa militar (os fascistas adoravam, os chineses também).
Sim
Mas o capitalismo não é a idéia que venceu. E não morreu a voz que se levanta contra ele, sem suportar o que estamos fazendo com nosso mundo e com nós mesmos.

E Cuba será sim, sempre, um exemplo de resistência. Ainda que como símbolo impreciso, falho, remoto... uma espécie de refúgio dos sonhos que não podem morrer, de uma esperança acalentada com corações, braços, lágrimas, gritos de tantos que não conseguiram se resignar em silêncio.
Que ao menos não esqueçamos.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Trecho do discurso de formatura

Aqui vai um trecho do discurso de formatura que dissemos eu e a Camis, na colação da turma 2003-2007 da Psicologia, USP:

(...) E isso que fica de tudo o que vivemos está encarnado em nós, é essa dimensão tão pequena que não cabe na pretensiosa enormidade das abstrações.
São as profundas transformações dessas pessoas que escolheram continuar, depois de perder as certezas todas, atravessando um rio sem margens visíveis, tendo somente a si mesmas e as diferentes presenças dos outros navegantes, na turbulência de suas próprias águas.
Num mundo que nos obriga a esquecer o que nos faz humanos, são esses encontros com os outros, tantas vezes tão difíceis, que nos permitem redescobrir quão além estamos dos mecanismos e fórmulas aos quais usualmente somos reduzidos hoje.
São, enfim, também esses encontros que nos permitem descobrir que psicologia, mais do que ciência e profissão, é uma morada coletiva, uma casa que construímos juntos continuamente, pra abrigar medos, sonhos, saudades.
Saudade é, quem sabe, o que mais fica. Saudade dum tempo em que nos descobrimos juntos, em que as perdas nunca eram tão grandes, em que por tantas vezes era permitido não saber e ter o tamanho de humanos, em que simplicidade ainda não era palavra de luxo. Saudade de a vida ser essa enorme promessa e o mundo parecer estar nascendo agora.

(Amo demais... saudades já, demais)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Alice Ruiz

já não temo os fantasmas
invoco a todos
que venham em bando
povoar meus dias
atormentar minhas noites
entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me falta

Alice Ruiz

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Walt Whitman


Trechos de "Folhas de relva", Walt Whitman (!)


"(...) Alguém estava pedindo para ver a alma?
Olhai vossa própria forma e semblante, pessoas, substãncias, bichos, as árvores, os rios defluindo, as rochas e as areias.

(...)

Notai que o corpo inclui e é o significado, a idéia mestra, e ele
inclui e é a alma:
quem quer que sejais vós - como é sublime e como é divino o vosso corpo ou qualquer parte dele!"

"(...) Folga comigo na grama, afrouxa o nó da garganta,
nem palavras, nem música, nem rimas estou querendo, nem
costume nem lição, nem memso do melhor,
quero só o acalanto, o murmúrio da tua voz valvar.

Penso em como uma vez nos espichamos deitados certa manhã de verão transparente,
como forçaste a cabeça nos meus quadris e gentilmente te viraste sobre mim
e me rasgaste a camisa no osso do peito e efiaste a língua em meu coração nu
e foste assim até sentir-me a barba e foste assim até sentir-me os pés.

(...)

As barbas dos homens moços brilhavam de gotas d'água
caindo-lhes dos compridos cabelos,
pequenos fios d'água lhe escorriam pelo corpo todo.
Uma invisível mão também passava pelos corpos deles,
descendo trêmula das frontes e quadris.

Os moços nadam de costas, claras barrigas ao sol, sem
indagarem quem estende a mão para eles,
eles não sabem quem enche o peito e desiste de sobrancelhas
curvadas e vacilantes
nem lhes ocorre que estejam salvando alguém com a água que respingam.

(...)

Já não ouviste dizer que era bom ganhar o dia?
Eu digo que perder também é bom, batalhas são perdidas com o mesmo espírito com que são ganhas.

(...)

Viva àqueles que fracassaram!
E àqueles cujos navios de guerra afundaram no mar!
E àqueles que em pessoa afundaram no mar!
E a todos os generais que perderam nas manobras e foram todos heróis!
E ao sem-número dos heróis desconhecidos equivalentes aos
heróis maiores que se conhecem!

(...)

Não sou de concha calosa,
tenho instantâneos condutores por mim todo, esteja andando
ou parado,
apreendem cada objeto e o levam sem dano através de mim.

Eu simplesmente me animo, tateio, sinto com os dedos, e sou
feliz
tocar com minha pessoa a de outrem é quase tanto quanto eu
posso resistir.

Estão todas as verdade à espera em todas as coisas, (...)

(...)

Eu parto que nem ar, sacudo os cabelos brancos ao sol que
está indo embora,
derramo minha carne em remoinhos e a deixo flutuando em
pontas rendilhadas.

Eu me planto no chão para crescer com a relva que eu amo,
se de novo me quiserdes, buscai-me embaixo das solas dos
vossos sapatos.

Dificilmente sabereis quem sou ou o que significo,
mas apesar de tudo para vós serei boa saúde
purificando e dando fibra ao vosso sangue.
Deixando de encontrar-me ao primeiro momento, conservai a coragem:
perdendo-me em algum lugar, ide procurar-me em outro;
em algum ponto eu hei de estar parado a esperar por vós".

sábado, 19 de janeiro de 2008

Associação livre

Gosto de dormir em viagens curtas ou na última hora de uma viagem longa. É como um sentido instintivo de fim, que me faz finalmente aceitar...
Eu nunca estou suficientemente distraído e sempre quero mais da alegria – a que já tenho, a que já tive, a que sonhei, a que adivinho, a que me mata ou me faz reviver... as que têm e as que não têm nome. Sempre fui tolo o suficiente pra achar que se desejamos algo estando completamente inteiros naquele desejo, então aquilo é nosso por direito. Porque a vida tinha de ser justa...
Devia ter aprendido na Índia a não acreditar nas palavras que me dizem e a aceitar que momentos de graça e de alegria plena são relâmpagos (nossos olhos não saberiam o que fazer com tanta luz se ela durasse mais). O resto é travessia da escuridão de infinitas solidões. E só.
Mas não aprendi. E sempre me recusei a adotar a sabedoria cínica das razões pragmáticas e do realismo que se conforma. Porque nunca um soco vai ser capaz de ensinar mais e fazer mais bem que um beijo (só preciso convencer a vida disso... mas ela é tão cabeça-dura). E a memória de um único instante já é suficiente pra nos desviar pra sempre o caminho.
Acho que sou amigo do Álvaro de Campos porque já levei porrada... e sou ridículo tantas vezes... e defendo a Psiquê do mito e também olharia pro rosto proibido do amado, e não aceito a felicidade que não tem rosto e sacrificaria meu fígado pra roubar o fogo dos deuses e prefiro uma vida breve a deixar de ouvir o canto das sereias.
O escuro selvagem da floresta me parece mais luminoso que nossas lâmpadas elétricas e eu sempre gostei demais do silêncio dos cristais cheios de pontas...
Não há nada que nos garanta que essa vida é mais real que um sonho, nos lembram os mestres chineses. Os meus, de qualquer forma, são meu único norte e sempre me levam pra fora do que eu tinha planejado. “Porque uno es más autentico cuanto más se parece con lo que ha soñado para sí mismo”.
Um tio meu me dizia o quanto seria linda uma viagem que faríamos. Ela nunca aconteceu e até hoje meus olhos brilham como se eu já estivesse lá e o preço por esse lume vivo no olhar é alto demais e eu sempre caio em todas as armadilhas que eu já devia conhecer...
Troquei a sabedoria prudente pela vida e desde então os perigos dos quais estava protegido não cessam mais. Acredito e amo os vaga-lumes porque eles me lembram que as estrelas também estão entre nós e são sim pequenininhas, como o sabem as crianças, e é só se descobrindo pequeno que alguém pode amar e ser amado.

(Não sei até quando, mas ainda prefiro essa dor de ouvir meu telefone tocando quando é sempre algum outro barulhinho à muda resignação das violetas sem cheiro)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Pequena estória de um porquinho

Era uma vez um porco-espinho.
Só que diferente dos demais de sua espécie.
Por alguma razão misteriosa, o porco-espinho desta história não tinha a pele coberta de espinhos voltada para fora, mas para dentro. Era como se ele tivesse um casaco de espinhos do avesso, com os espinhos espetando a si mesmo. Um casaco impossível de tirar.
A presença dessa pele de espinhos interna tinha algumas conseqüências na vida do porquinho. A primeira é que os demais porcos-espinhos não sabiam identificá-lo como um outro da mesma espécie, assim como os outros animais não o reconheciam como tal. Todos o consideravam algum tipo de roedor comum, um rato do mato, talvez um porquinho-da-Índia. É que, ainda por cima, a parte de fora do casaco, aquela que nos outros porcos-espinhos ficava pra dentro, era toda macia e coberta de um pelo fininho, que dava a ele todo um ar (e textura) de chinchila ou coisa do tipo.
Outra conseqüência desse casaco ao contrário era que qualquer contato do porquinho com qualquer outro bicho ou coisa fazia com que os espinhos ocultos de seu casaco secreto lhe espetassem dolorosamente a pele (e os órgãos), sem que ninguém pudesse se dar conta disso. Por um tempo, por causa disso, o porquinho evitava o contato com todos, a fim de se proteger dessa dor que nem ele mesmo conseguia entender, já que ele próprio não via os espinhos que carregava lá dentro.
Acostumado a isolar-se com medo da dor inexplicável, o porquinho passou a habitar uma toca subterrânea escura. Alguns bichos da floresta onde ele vivia o admiravam por sua austeridade de eremita. Supunham que ali estaria alguém que tinha conseguido renunciar ao mundo em nome de alguma busca maior e mais nobre. Outros o achavam um bicho arrogante, que se considerava superior aos demais e por isso nem se dava ao trabalho de ir ao encontro de nada nem ninguém. Outros tinham pena dele. A maioria, com o passar do tempo, passou a simplesmente ignorá-lo.
O que ninguém, nem ele próprio desconfiava, é que num certo ano especialmente quente, com a chegada da primavera, alguma coisa dentro do porquinho começou a desabrochar como as flores estavam fazendo lá fora (sem que ele nem soubesse, acostumado que estava com a escuridão da toca). Alguma coisa mais forte do que a força do costume, do medo, do conforto do mesmo, da dor... alguma coisa mais forte que seus espinhos o impelia a sair e buscar o quê? A resposta foi se mostrando evidente: o porquinho precisava de outros bichos, de outros porquinhos. Precisava mais do que de comida, de água, da proteção da caverna, do quentinho nos dias de chuva, do fresco que o protegia do calor extremo, precisava mais do que tudo dos outros. A partir daquele momento, era (quase) como se sem os outros ele não mais existisse. Ele até existia na caverna, mas agora ficava claro que existia endereçado a alguém. Que existia só porque no fundo, mesmo sem saber, carregava dentro de si a promessa inabalável de que em algum dia, algum outro porquinho abriria a carta que ele carregava em si mesmo e a conseguiria ler e entender. E quem sabe ele mesmo então pudesse ouvir o que estava escrito na carta, pois nem ele sabia o que essa carta dentro dele dizia. Só o que sabia é que ela fora escrita durante anos, cheia de esmero, esperando o dia em que algum porquinho a encontraria entre os espinhos.
Talvez os espinhos tivessem surgido num tempo remoto da vida do porquinho pra proteger essa carta. Pra que ninguém a encontrasse cedo demais, ou antes de saber o que fazer com ela... mas isso era impossível de saber.
O que o porquinho sabia é que não havia mais como esperar ali.
O que ele não sabia é que a dor dos espinhos escondidos seria agora ainda maior que antes, pois seu corpo todo havia se acostumado à ausência de contatos um pouco mais fundos ou com um pouco mais de duração. E quando ele se desse conta disso, sangrando lá dentro sem nem saber, ficaria muito perdido...
Agora eu pergunto a vocês: o que vai ser desse porco-espinho cuja necessidade mais premente e intensa se choca com aquilo que ele é? O que será dessa criaturinha minúscula e quase invisível que já não sabe mais viver sem o abraço de outros porcos-espinhos, se cada abraço lhe espeta tão dolorosamente?
Desde já peço desculpas (talvez devesse tê-las pedido antes), mas eu também não sei. Acabo de encontrar o porquinho morando em algum lugar aqui, no meio do caminho entre a caverna e o desconhecido e a saída pra o impasse em que ele (a vida) se meteu está longe do que alcança minha imaginação. Suponho que cada um de vocês tenha uma resposta possível (ou mais perguntas ainda). O porquinho morre de curiosidade pra conhecê-las, ainda que me confesse que ele também tem dúvidas a respeito de se existe alguma, ou se existe alguma que ele possa escutar sem descobrir por si mesmo. Por enquanto, eu e ele estamos um tanto perplexos, sem conhecer saída pro labirinto em que ele está desde muito tempo.
E é um porquinho tão pequeno, imaginem só...

Silêncio

O silêncio que a gente busca não é um silêncio que se possa encontrar como resultado de uma procura ativa. Esse silêncio de caverna, essa música dos cristais pra além do tempo, nasce da espera. (E) nos encontra sempre e somente quando estamos distraídos. Muitas vezes só notamos que ele está a nosso lado quando já está perto de ir embora ou quando já foi. É enorme o perigo de idolatrar as pegadas que ele deixa confundindo-as com ele. Fazer isso nos ensurdeceria para sempre...

domingo, 13 de janeiro de 2008

Namorado - Drummond

Gostei demais desse texto. Dedo na ferida até o fundo, mas lindo...

Namorado

Carlos Drummond de Andrade

"Quem não tem namorado é alguém que tirou férias de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, de saliva, de lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiriu, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é fácil. Mas namorado mesmo, é muito difícil.
Namorado não precisa ser o mais bonito, mas aquele a que se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida, ou bandoleira; basta um olhar de compreensão ou mesmo aflição.
Quem não tem namorado não é quem não tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento, e dois amantes, mesmo assim não pode ter namorado.
Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema, sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho. Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou largatixa e quem ama sem alegria. Não tem namorado quem faz pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos de amor com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.
Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre a meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor. Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.
Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não chateia com o fato de o seu bem ser paquerado. Não tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar. Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou meio-dia de sol em plena praia cheia de rivais. Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.
Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilo e medo, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela.
Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria. Se você não tem namorado porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida passar e de repente parecer que tudo faz sentido:
'Enlou-creça' "

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Loucura

"Também eu saio à revelia
E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpera e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo(não posso ainda
acreditar
Na vida) e demito o verso como quem
acena
E vivo como quem despede a raiva de Ter
visto."

Ana Cristina César

Trecho de conversa hoje (filosofia de messenger pra não se afogar irreversivelmente na angústia):
'E quais são os motivos pra sua possível loucura? (pergunta o amigo)'
'Bobagem (respondo). Talvez o fato de que a vida nunca é como nos filmes... temos muitas horas e pouco tempo. Muitas esperas, e coisas insolúveis e nem temos um desfecho triste ou feliz, mas uma incerteza inabalável, sempre...'

domingo, 6 de janeiro de 2008

Poesia - Fernando Pessoa

"Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e margens dos rios. Também a há na cidade - não o neguem - é evidente para mim aqui onde me sento: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas, em cada movimento ínfimo (...).
(...) Pois a poesia é assombro, admiração, como de um ser caído dos céus que toma plena consciência de sua queda, espantado com o que vê. Como alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por recordar esse conhecimento, lembrando-se que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas não se lembrando de mais nada."

Fernando Pessoa ("Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal", presente da Tan, amiga linda)